Vol 16, No 31, Enero-Junio 2018 ISSN: 1409-3251 EISSN: 2215-5325
Queimadores de campo, fazedores
de queijo e fiscais ambientais:
controvérsias sobre o manejo do fogo na
região do Parque Nacional da
Serra da Canastra - Minas Gerais - Brasil
Incendiarios de campo, elaboradores de queso y fiscales ambientales:
controversias sobre el manejo del fuego en la región del Parque Nacional
de la Sierra de Canastra-Minas Gerais-Brasil
DOI: http://doi.org/10.15359/prne.16-31.3
Rosângela Pezza Cintrão
Pesquisadora autônoma, Brazil.
bibicintrao@gmail.com
Leonardo Vilaça Dupin
Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), Brazil.
leodupin@hotmail.com
Resumo
Atualmente, camponeses e moradores de pequenos municípios marcadamente rurais da região da Serra da Canastra, no Estado de Minas Gerais, no Brasil, que têm na produção e comercialização de queijos artesanais uma das bases de sua economia, veem seus modos de vida ameaçados diante de restrições sanitárias e ambientais que chegam à região, sobrepondo-se a práticas e saberes culturalmente estabelecidos. Buscamos neste artigo apontar como algumas leis e normatizações, impostas a partir de saberes administrativos e de técnicos especializados, chegam ao espaço cotidiano dessas famílias e podem trazer efeitos opostos aos pretendidos, levando à desestruturação de modos de vida que vinham permitindo maior preservação dos recursos naturais. Uma das consequências é o agravamento dos incêndios florestais, assim como o fortalecimento de modelos industriais de produção agropecuária, que acarretam uma perda geral de biodiversidade.
Palavras-chave: queimadas, biodiversidade, queijos
Resumen
Actualmente, campesinos y habitantes de pequeños municipios rurales en la región de la Sierra de Canastra, en el Estado de Minas Gerais - Brasil, que tienen en la producción y comercialización de quesos artesanales una de las bases de su economía, ven sus modos de vida amenazados por restricciones sanitarias y ambientales que llegan a su región anteponiéndose a prácticas y saberes establecidos culturalmente. En este artículo intentamos describir cómo algunas leyes y normativas, impuestas a partir de saberes administrativos y de técnicos especializados, llegan a los espacios cotidianos de estas familias y pueden tener efectos opuestos a los pretendidos, llevando a la desestructuración de modos de vida que permitían una mayor preservación de los recursos naturales. Una de las consecuencias es el agravamiento de los incendios forestales, así como el fortalecimiento de modelos industriales de producción agropecuaria, que acarrean una pérdida general de la biodiversidad.
Palabras clave: incendios, biodiversidad, quesos
Introdução
Chegamos à região do Parque Nacional da Serra da Canastra (PNSC), no sudoeste do estado de Minas Gerais, Brasil, motivados por pesquisar as controvérsias em torno da legalização sanitária de um famoso queijo artesanal, que a partir da segunda metade do século XX passou ser perseguido com base em normas e padrões sanitários estabelecidos internacionalmente. No entanto, o trabalho de campo, feito entre 2012 e 2016, apontou que há outras normas legais impondo restrições ao modo de vida dos camponeses e demais moradores locais. Uma delas, sobre a qual focaremos neste artigo, refere-se às restrições colocadas pela legislação ambiental ao manejo do fogo nas pastagens naturais desta região, inserida no bioma cerrado, com solos ácidos e uma estação seca bem demarcada
A produção de queijos artesanais está presente nesta região montanhosa desde meados do século XVIII, quando se deu sua colonização por camponeses luso-brasileiros, após a expulsão (e extermínio) de povos ameríndios que a habitavam. As novas populações trouxeram consigo espécies animais domesticadas anteriormente inexistentes, como o gado bovino, assim como a tecnologia para a produção dos queijos. A presença de extensos chapadões e de campos naturais favoreceu a expansão da pecuária, associada ao cultivo de subsistência em fazendas diversificadas (Barbosa, 2007).
Após a criação do PNSC, na década de 1970, os queijos produzidos no seu entorno ganharam o seu nome, passando a ser conhecidos como “queijos Canastra” e, após os anos 1990, se converteram num dos símbolos alimentares de Minas Gerais, tendo seu modo de fazer reconhecido como patrimônio cultural brasileiro. Os queijos, juntamente com lavouras de café e milho, são as bases principais da economia (Cintrão, 2016), juntamente com turismo em torno do Parque.
Atualmente, centenas de famílias de perfil camponês têm no gado de leite e na produção de queijos uma das bases de seu modo de vida. Porém, tanto a legislação sanitária quanto a ambiental desencadearam processos de ilegalização de práticas socialmente estabelecidas por essa população que, desde a colonização da região, convivia com a flora e a fauna nativas em sistemas agropecuários que operam em co-produção com a natureza (Ploeg, 2008) e que passa a receber multas e restrições, tornando mais difícil sua condição de vida. Como demonstraremos, estes processos terminam por favorecer modelos de produção industrial em maiores escalas, ambientalmente mais agressivos e mais injustos social e economicamente (Cintrão, 2016).
Argumentamos que na base da construção destas leis e normas jurídicas, assim como na forma de ação dos órgãos e agentes de fiscalização, estão modelos de significação que cristalizaram sistemas classificatórios tornados hegemônicos a partir do século XVIII, por sociedades científicas, que se construíram concomitantemente com a formação das administrações burocráticas do Estado moderno (conforme definido por Max Weber) e que surgem estreitamente associadas a dois outros fenômenos: um processo de racionalização e a importância do saber e da expertise, tanto nas práticas administrativas quanto na formação dos agentes (L’Estoile, 2003).
E embora esta forma especificamente moderna da dominação racional seja normalmente percebida como um traço positivo, é possível analisá-la como repousando também sobre uma “crença” - a de que ela se funda na razão (L’Estoile, 2003) – o que a converte num instrumento de poder, utilizado contra as comunidades locais e sua pretensa “irracionalidade”, detratando ou desclassificando sua relação com o ambiente onde vivem. Apoiados nessa crença, gestores governamentais apontam as “deficiências” das técnicas e modo de vida locais, desconsiderando suas instituições sociais e seu modo de organização de vida (Scott, 1998).
A criação do PNSC e o agravamento dos incêndios florestais
O PNSC abrange uma área decretada de aproximadamente 200 mil hectares, dos quais apenas 70 mil, no alto da serra (onde predomina uma vegetação de campos de altitude) estão com a situação fundiária regularizada, ou seja, sob posse e domínio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que atualmente gerencia os parques nacionais no Brasil. O restante da área não regularizada (cerca de 130 mil hectares), é constituído por propriedades rurais.
Recentemente, três grandes incêndios ocorreram na área do Parque, todos entre os meses de agosto e outubro. Em 2012, foram mais de 1.500 hectares afetados. E em 2014 e 2016, foram cerca de 40 mil hectares, em diferentes focos. Para combatê-los, foram contratados dezenas de brigadistas, além de helicópteros e aeronaves. Os órgãos ambientais e os meios de comunicação noticiaram estes incêndios como “criminosos”, partindo de proprietários de terras da região que ateariam fogo para a renovação de pastagens. As reações vieram no sentido de intensificar as investigações para punir os possíveis autores.
No Brasil, o incêndio em qualquer parte da natureza é considerado legalmente crime, sendo o uso da “queima controlada” admitido apenas em alguns casos excepcionais, “quando peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego do fogo”, mediante autorização dos órgãos ambientais e cumprimento de um conjunto de exigências (Decreto no 2.661, de 8/jul/1998).
Na região da Canastra, assim como em outras regiões do cerrado brasileiro, a ocorrência de fogo é fenômeno antigo, ocorrendo tanto por fatores naturais (como raios) quanto antropogênicos. Antes da colonização pelos europeus, o fogo já era utilizado pelos ameríndios como ferramenta de manejo para caça e para permitir a frutificação de algumas espécies alimentícias. No século XIX, a prática de queimada foi adotada pelos novos habitantes, com algumas adaptações, para a renovação de pastagens para o gado, com frequência bienal/anual, no final da estação seca (Medeiros e Fiedler, 2002; Barbosa, 2006).
Os diversos relatos da população da região, especialmente dos mais idosos, demonstram que o manejo do fogo possui elementos de sofisticação, envolvendo toda uma ciência e um conhecimento do ambiente. Por exemplo, boa parte dos produtores de leite e queijo do município de São Roque de Minas (onde fica a sede e a maior área do Parque), tinham duas áreas de alimentação para o gado: uma nas partes mais acidentadas e baixas, próximas às encostas das serras e outra nos campos naturais das terras altas do Chapadão da Canastra, atualmente dentro da área desapropriada do Parque, que era toda ocupada por fazendas com campo nativo, onde o gado permanecia apenas um período do ano. Neste sistema, um dos componentes fundamentais era o manejo do fogo, que leva a uma distinção dos campos nativos, pela população local, em três classificações: “campo” (quando o capim está verde), “macega” (quando o capim está seco) e “queimado” (quando o capim rebrota, após o fogo).
Para a queima, os fazendeiros levavam em conta diferentes fatores, como o período do ano e a umidade do solo (no final do período seco, depois de chuva e com terra úmida, para que o capim brotasse rápido), a declividade do terreno (sempre de cima para baixo, pois “fogo morro acima e água morro abaixo ninguém segura”), a direção do vento (o fogo era posto contra o vento e os contra-fogos do outro lado, a favor do vento, para encontrar o fogo na outra direção e apagar a queimada). As matas nas beiras dos rios eram preservadas por aceiros, em parte feitos com o próprio fogo, capinando as beiradas e queimando e apagando de pouco em pouco, para aumentar a largura do aceiro, às vezes à noite (por ser mais fresco). Era feito um rodízio e um descanso bienal, com cada fazenda dividida em duas partes e queimando metade da área a cada ano. E as áreas queimadas eram alternadas entre as diferentes fazendas contíguas. Assim, a realização da técnica envolvia uma espécie de planejamento coletivo, com a organização de mutirões para ajudar a fazer os aceiros e a controlar o fogo, com algum escalonamento, entre os fazendeiros, das áreas a serem queimadas. Como as áreas circunvizinhas das que seriam queimadas haviam sido queimadas no ano anterior, o manejo do fogo era facilitado e raramente fugia do controle.
De uma maneira geral, a população local vê a queima das pastagens com bons olhos: exige pouca mão-de-obra, tem o custo baixo e o resultado é muito eficiente, garantindo alimento para o gado no período seco e evitando a redução do volume de leite produzido pelo rebanho. E preservava as matas ciliares, garantindo o abastecimento de água para o gado e o estoque de madeiras para construções, instrumentos de trabalho, cercas:
Na época do meu avô (...) eles queimavam em agosto, porque chovia cedo (...) os vizinhos iam pondo fogo, queimavam o que eles queriam queimar (...) Não queimava beira de córrego não (...), queimava só o campo. O campo você queimou e choveu, 10 dias depois tem pasto. (...) Queimava o Chapadão, passava 10 dias e subia as vacas pra lá, se o produtor estava fazendo 5 queijos [por dia], passava a fazer 15. Era o trem melhor que tem, queimada de capim campo é bom demais (produtor de São Roque).
Com a criação do PNSC e a criminalização do uso do fogo, todo este sistema coletivo parece ter sido, ao menos parcialmente, desestruturado, não apenas na área do Parque, mas também fora dela, a partir de uma maior fiscalização. Pesquisadores e técnicos especializados frequentemente classificam estas práticas como rudimentares e “incorretas”, apontando a superioridade de técnicas consideradas mais modernas e eficientes de manejo, que prescindem do uso do fogo. Mesmo pesquisas mais recentes, que reconhecem a coevolução da biota do cerrado com o fogo, recorrentemente ressaltam seus efeitos adversos (Medeiros e Fiedler, 2002).
E, embora tais análises técnicas e científicas sejam as únicas consideradas legítimas na elaboração de normas e leis no Estado racional moderno, elas não são igualmente legitimadas pelas populações da região, que têm suas próprias representações dos fenômenos. Isso acontece também no caso da regulação sanitária, em que técnicos especializados e órgãos de fiscalização sanitária condenam o uso do leite cru e fazem inúmeras exigências com base em padrões industriais estabelecidos internacionalmente, entrando em choque com as referências culturais da região (Cintrão, 2016). Da mesma forma, há diferentes percepções entre a população local e os técnicos e agentes ambientais a respeito do fogo.
Em São Roque de Minas, por exemplo, há uma forte hostilidade da população com o órgão ambiental e é praticamente unânime a avaliação de que após a criação do PNSC, com a retirada das fazendas nas chapadas e a proibição do uso do fogo nos campos, houve um agravamento dos incêndios, resultando numa redução da quantidade e diversidade da fauna e da flora nativas, que seriam os principais motivos alegado para a criação do parque.
Um morador da cidade, que atuou por quatro anos como brigadista, apagando incêndios na área do PNSC, por exemplo, considera que perdeu tempo da sua vida, por ser um trabalho inútil, porque segundo ele o fogo é bom e atualmente há mais matas e animais fora do Parque, nas fazendas de produção de gado leiteiro que mantêm pastos naturais, do que dentro dele. Outros dois moradores comentaram que “a televisão só mostra o fogo no momento da destruição, mas não o “queimado” [alguns dias depois] quando fica com muita vida e com o verde mais bonito do mundo”. E citam nomes de várias frutas nativas que só produzem depois da queimada, como caju do cerrado, pitanga, uvaia do campo, mangaba, sapucaia, cabritinha, orvalho, araçá do campo, gabiroba, bacupari, orelha de carneiro, chupinha:
Lá na área do Parque tinha muita [fruta] (…) Queimava, a vaca ia comendo o capim e a gente [mães e crianças] ia atrás buscando as frutas. Era demais. Hoje não tem mais nada. O Ibama [antigo ICMBio] fala que não pode queimar porque está destruindo, mas já destruiu, acabou. Essas frutas não voltam mais, os passarinhos não têm o que comer.
Em geral, os argumentos locais são carregados de revolta por considerarem que “o sistema antigo dos fazendeiros era melhor”. Predominam observações como: “com mais de dois anos os campos já se tornam macega e não são bons nem para o gado nem para outros animais que pastam, como ema e veados campeiros”; “se não queimar com maior frequência depois ninguém controla, não adianta pagar helicópteros e brigadistas”; “antes o fogo avançava mais devagar e depois da criação do Parque os incêndios têm sido maiores, mais fortes e violentos, matando muitos animais, que não conseguem fugir”. Observam que o incêndio de 2014 queimou tudo, até passarinhos, tatus canastra grandes (com muitos anos de vida) e matas ciliares que nunca haviam queimado quando era fazenda.
Nesse contexto, enquanto os órgãos ambientais culpam a ação humana e os fazendeiros pelos incêndios, a população local culpa o PNSC pela retirada dos moradores e pelo fim do manejo dos campos com o fogo, levando a um aumento dos incêndios descontrolados. Assim, a queimada continua sendo utilizada, em especial em áreas mais isoladas e distantes, não alcançadas pela fiscalização, como disse um produtor de um município não abrangido pelo Parque:
Não existe jeito de acabar nesta nossa região com fazedor de queijo e com queimador de campo (...) É proibido queimar, mas você só vê a fumacinha levantando. O pessoal espera a hora que chove e queima. (...) É um sistema de recomposição natural, você queima e ele brota de novo, o campo renova. É onde dá pastagem boa. A vida inteira queimou (...) Isso não acaba, é tradição que vem há milhões de anos. Agora, não pode deixar entrar em mata.
EEmbora exceções para a queimada tenham sido reconhecidas legalmente nesta região, a licença para sua execução é morosa e burocrática, de difícil acesso, precisando ser refeita a cada ano. Para obtê-la, as áreas de preservação permanente e reservas legais das propriedades precisam ser averbadas, mas grande parte dos produtores não tem a situação fundiária regularizada e não possui recursos para arcar com os serviços de agrimensura e cartoriais. O próprio encaminhamento do processo é problemático, uma vez que exige deslocamentos até a cidade, com custos financeiros e de tempo. E as autorizações podem demorar tanto que quando chegam não é mais conveniente e seguro colocar fogo nos pastos, pois o período adequado se esvaiu.
Nos deparamos com esta situação quando encontramos um produtor rural de São Roque, na sede do ICMBio, vindo novamente solicitar a inspeção de um técnico para a autorização da queimada do capim nativo em sua propriedade, no entorno do PNSC. Algumas semanas depois ele comentou que a primeira chuva que marcava a “estação verde” havia caído e os fiscais ainda não haviam feito a vistoria, impossibilitando-o de utilizar legalmente a prática. Relatou que poucos anos atrás havia vivido uma situação semelhante, mas realizara a queima sem a autorização, recebendo uma multa de 16 mil reais, tendo recorrido à justiça para não pagar.
Esta situação parece ser recorrente para os camponeses mais próximos ao Parque Nacional, onde a fiscalização é mais intensa, que ficam impossibilitados de renovar suas pastagens, sujeitos às multas e até ao confisco de terras. Sofrem com a falta de alternativas e chegam a ter sua produção de leite e queijo (e, consequentemente, sua renda) reduzida a cerca de dois terços em relação ao período de chuva. Nas terras mais planas, a proibição do fogo vem estimulando a substituição dos campos nativos por braquiária, espécie considerada “invasora” pelos ambientalistas. Situação semelhante acontece em outras regiões do Brasil, por exemplo, nos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul, onde a proibição do extrativismo da araucária e do uso do fogo para manejo do campo têm levado também a desestruturações nos modos de vida, contribuindo para a degradação ambiental, com o aumento do cultivo de monoculturas e de áreas de reflorestamento com espécies exóticas (Cruz, 2012).
Considerações finais
Na região da Canastra, especialistas e técnicos do orgão ambiental, apoiados em normatizações jurídicas e pesquisas científicas, continuam defendendo a proibição do fogo, assim como a retirada das atividades econômicas e das populações que permanecem na área não regularizada do Parque. Tentam assim, estabelecer um império do domínio da natureza isolada, através da técnica, que implica na amputação da capacidade das comunidades locais de definir e governar suas próprias vidas.
Almeida, analisando as políticas ambientais e desenvolvimentistas para a Amazônia, critica um conjunto de noções, cristalizadas na base das análises especializadas, que desconhecem e desconsideram as formas de vida das populações locais, como o biologismo e o geografismo (que entendem a questão ambiental como uma questão sem sujeitos) ou as visões dualistas que caracterizam a “racionalização” como uma substituição de processos “tradicionais” e estabelecem uma oposição entre “natureza” e “cultura”. Observa que estes esquemas interpretativos foram construídos no final do século XVIII - quando foram institucionalizadas as sociedades científicas e as administrações burocráticas do Estado moderno – e se consagraram como sistemas classificatórios hegemônicos. (Almeida, 2008, p. 64).
No mesmo sentido Scott (1998), analisando o surgimento da ciência florestal também no século XVIII, aponta como esta lógica “racional” dos gestores de parques, ancorada nas ciências biológicas e em conceitos abstratos de natureza, dados estéticos e estatísticos, impõe-se e torna-se um instrumento de poder, utilizado contra as comunidades locais. Essa concepção racional-tecnocrática, que centra-se em aspectos da natureza que podem ser apropriados para determinado uso humano (apreciação ou pesquisa), reduz um grande número de possíveis usos e ignora o contexto local e os vastos, complexos e negociados usos sociais destes territórios para agropecuária, caça, pesca e coleta de alimentos, bem como para sociabilidades, ritos festivos, religiosos, entre outros.
De maneira similar ao que acontece na regulação sanitária da produção de queijos Canastra, as normatizações ambientais desconsideram saberes e valores culturalmente estabelecidos e investem contra os modos de trabalho locais e seus instrumentos (notadamente o fogo, mas também o extrativismo), vistos como símbolos do homem primitivo. Ambos processos operam com base numa racionalidade científica, com esses esquemas passando a ser automaticamente reproduzidos como argumentos, utilizados em situações de conflito, que garantem como “verdades naturais” a ilusão de sua eficácia, adquirindo autoridade intelectual e cristalizando-se em legislações, que reforçam sua autoridade e legitimam a atuação de outsiders (técnicos especializados, pesquisadores e fiscais), enviados para compensar supostas “deficiências” locais, com poderes de determinar as normas (do ponto de vista científico e jurídico) e ao mesmo tempo de fiscalizar e garantir seu cumprimento (como moralidade pública) (Ribeiro, 2008).
No entanto, o contexto de ilegalização e desestruturação de práticas anteriormente existentes na região da Canastra parece estar levando ao agravamento dos incêndios e à substituição de campos naturais por pastagens cultivadas, com um maior uso de mecanização e adubações químicas, terminando por desencadear, contraditoriamente, uma perda da sócio-biodiversidade local.
Referências
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Barbosa, C. (2007). Território de Vida e Trabalho dos Pequenos Produtores de Queijo da Serra da Canastra: um estudo sobre a relação entre produção camponesa e espaços naturais protegidos nas nascentes do Rio São Francisco, Minas Gerais. Dissertação de Mestrado. UFU.
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Cruz, F. (2012). Produtores, consumidores e valorização de produtos tradicionais: um estudo sobre qualidade de alimentos a partir do caso do queijo serrano dos Campos de Cima da Serra – RS (tese de doutorado). Porto Alegre: UFRGS/PGDR.
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Latour, B. (1988). The pasteurization of France. Cambridge and London: Harvard University Press.
Medeiros, M., e Fiedler, N. (2004). Incêndios Florestais no Parque Nacional da Serra da Canastra: desafios para a conservação da biodiversidade. Ciência Florestal, Santa Maria, (14), 2.
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Scott, J. (2002). Formas Cotidianas da Resistência Camponesa. In: Raízes (21), 01, jan/jun.
Queimadores de campo, fazedores de queijo e fiscais ambientais: controvérsias sobre o manejo do fogo na região do Parque Nacional da Serra da Canastra - Minas Gerais - Brasil
Rosângela Pezza Cintrão, Leonardo Vilaça Dupin
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