A agricultura familiar entre o setorial e o territorial? Novos referenciais para as políticas de desenvolvimento rural no Brasil The family farming between the sectorial and the territorial? New referentials for the rural development policies in Brazil

Implementarion of agriculture practices to improve ecosystems from small producers in the hydrographic region Estero de Jaltepeque, El Salvador

Paulo André Niederle
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
pauloniederle@gmail.com

Resumo

O artigo discute a coexistência de diferentes referenciais de desenvolvimento nas políticas para a agricultura familiar no Brasil. Para tanto, propõe uma análise de dois programas, tomados aqui como exemplares de duas vias de desenvolvimento rural concorrentes e complementares. Inicialmente, analisa a trajetória do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e seu enfoque predominantemente setorial e agrícola. Em seguida, centraliza a atenção sobre o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PRONAT) que, de outro modo, traz à tona um referencial territorial centrado na redução das desigualdades e da pobreza rural. Finalmente, o artigo discute brevemente as implicações da coexistência destes referenciais para a criação de um sistema nacional de desenvolvimento rural.

Palavras chave: agricultura familiar, políticas públicas, desenvolvimento rural

Abstract

The paper discusses the coexistence of different referentials in the public policies for family farming in Brazil. For that, it proposes an analysis of two governmental programs, taken here as examples of both competing and complementary models of rural development. Initially, the paper analyzes the trajectory of the Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) and its predominantly agricultural and sectorial referential. Subsequently, it focuses on the Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PRONAT), which, on the other hand, brings up a territorial reference centered in reducing inequality and rural poverty. Finally, the paper discusses the implications of the coexistence of these referentials for the creation of a national system of rural development.

Keywords: family agriculture, public policies, rural development

Introdução

A trajetória recente das políticas para a agricultura familiar revela rupturas e continuidades em face dos referenciais de desenvolvimento rural que, desde meados dos anos 1990, tornaram-se predominantes tanto no campo acadêmico quanto no meio político-institucional brasileiros. Agora, em 2014, no bojo das discussões em torno do Ano Internacional da Agricultura Familiar, essa trajetória tem sido objeto de novas reflexões analíticas e políticas [1]. Com efeito, inúmeros temas que povoaram os debates agrários nos últimos vinte anos estão sendo retomados e colocados à prova de novas elaborações teóricas, que emergem neste momento de comemoração e debate sobre o passado, o presente e o futuro da agricultura familiar e do mundo rural.

Os debates em curso não apenas avaliam a magnitude das mudanças socioeconômicas que a agricultura familiar experimentou desde seu reconhecimento institucional pelo Estado, em meados dos anos 1990, mas, e de modo ainda mais radical, a própria pertinência da noção “agricultura familiar” para dar conta da diversidade de categorias sociais que habitam o meio rural de um país com expressiva heterogeneidade territorial. Ao longo desta última década uma das principais novidades no cenário agrário brasileiro foi a expansão das lutas por reconhecimento e direitos empreendidas por uma miríade de populações e comunidades tradicionais que, integrando o segmento da agricultura familiar, reivindicam, ao mesmo tempo, um olhar específico do Estado e da Sociedade em relação às suas especificidades socioculturais [2]

Na academia, este momento tem se mostrado propício ao surgimento de novas sínteses teóricas. De modo geral, predomina um entendimento acerca dos avanços que o meio rural experimentou em decorrência do reconhecimento da agricultura familiar, o que o legitimou a criação de políticas públicas que permitiram ao país reverter, ao menos parcialmente, o cenário de expulsão acelerada das famílias rurais, fruto do esgotamento do modelo de modernização conservadora da agricultura. Em outro sentido, contudo, renascem interpretações teóricas que, enfatizando as tendências mais globais do desenvolvimento agrícola (preeminência de um modelo que privilegia o agronegócio de exportação), questiona a capacidade de resiliência da pequena produção agrícola. Neste caso, assiste-se ao renascimento de uma convergência entre o referencial neoclássico da modernização e as teorias marxistas sobre o fim dos camponeses, que ressuscita um questionamento sobre a situação subordinada da pequena agricultura, fadada a manter-se na periferia das grandes transformações em curso no campo.

As teses que sustentam essa leitura associam-se a uma tentativa de demonstrar os limites da pequena agricultura familiar, sobretudo no que tange à composição do montante da produção agropecuária nacional (Buainain et al., 2013). Associa-se a esse enfoque setorial e produtivista um questionamento sobre a “insistência” do Estado brasileiro em direcionar políticas (aparentemente) equivocadas para agricultores com baixa capacidade produtiva (Alves e Rocha, 2010). A partir de uma análise dos resultados produzidos pelas políticas agrícolas mais tradicionais, essas teses sustentam argumentos não tão associados às dificuldades do Estado em readequar sua ação às condições sociais dos segmentos mais empobrecidos, do que à incapacidade dos mesmos em se tornarem “verdadeiros agricultores”, co-responsáveis pelo dinamismo da agropecuária brasileira. A “vocação produtiva” da agricultura nacional estaria confinada a uma pequena parcela de agricultores capitalizados, restando aos demais somente o acesso a um conjunto de políticas sociais que os manteria fora das estatísticas de pobreza, mas não os permitiria progredir economicamente [3]

De outro modo, neste artigo analisamos alguns aspectos acerca das transformações que afetam a agricultura familiar e o meio rural brasileiro conjugando um olhar diferenciado sobre os parâmetros de “sucesso” e “fracasso” da intervenção do Estado. O objetivo não é contrapor as conclusões mais pessimistas acerca do futuro da agricultura familiar, mas, antes, trazer à tona alguns elementos que complexificam a análise das implicações da ação pública. Nosso argumento sugere que, para além do referencial setorial ainda predominante nas leituras predominantes entre acadêmicos e policy makers, a agricultura familiar, em virtude do tipo de conformação social que representa, deve necessariamente ser encarada pelo seu forte enraizamento territorial, de modo que, mesmo os efeitos das políticas com um viés fortemente setorial – como o crédito agrícola – somente serão apreendidos se tivermos condições de compreender os efeitos de transbordamento que elas produzem no território, como consequência do modo como os agricultores familiares apropriam-se das políticas públicas e readequam-nas às suas estratégias de reprodução social (Cavalcanti, Wanderley e Niederle, 2014).

Para orientar esta análise, o artigo propõe uma distinção já recorrente em outros estudos entre dois tipos de referenciais de desenvolvimento rural: setorial e territorial. Por “referencial” estamos definindo um conjunto coerente de representações coletivas que os atores constroem para compreender e agir sobre o mundo real (Jobert e Muller, 1987). Esses referenciais atuam como guias para a ação, orientando os atores sociais na construção das políticas públicas (Grisa, 2010). Por sua vez, um referencial de política pública sugere a existência de uma forma de ver o mundo e conceber respostas para problemas públicos. Nestes termos, um “referencial setorial” é a expressão de um conjunto de representações sobre o papel estritamente agrícola que a agricultura familiar cumpre para o desenvolvimento, que é pautado pela sua função como produtora de alimentos, fibras e matérias primas, onde sobressai a imagem de estabelecimentos rurais tecnificados, capitalizados e produtivos. De outro modo, um “referencial territorial” acentua as diversas conexões de uma agricultura familiar multifuncional, integrada a um leque de segmentos sociais e atividades econômicas, onde os diferentes estilos de agricultura familiar, inclusive aquelas unidades mais vulneráveis e marginalizadas, reencontram seu lugar em uma estratégia mais ampla de desenvolvimento sustentável.

Para ser breve, sem perder a devida profundidade que o tema merece nos limites de um artigo, dentre um vasto leque de políticas direcionadas à agricultura familiar, o artigo focaliza apenas duas, hipoteticamente tomadas como expressão da coexistência de referenciais antagônicos. Inicialmente, a atenção volta-se para o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), principal política de crédito rural direcionada especificamente para os agricultores enquadrados nos parâmetros da Lei da Agricultura Familiar. O PRONAF é expressão de uma política pública que, apesar de diferenciada no que tange ao seu público, manteve um viés fortemente setorial, sendo criticado por inúmeros autores em virtude da predominância de um “caráter produtivista”. Em seguida, o artigo discute a emergência de um novo referencial a partir da criação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PRONAT), o qual se constitui como uma experiência diferenciada de crédito para investimentos produtivos e serviços territorializados. O artigo encerra analisando os desafios atuais no que diz respeito ao diálogo entre os referenciais (e as políticas) setorial e territorial, focalizando prioritariamente as discussões em torno da construção de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário.

A constituição do PRONAF

Instituído em 1995 pela Resolução n° 2.191 do Conselho Monetário Nacional (CMN), e regulamentado no ano seguinte pelo Decreto n° 1.946 da Presidência da República, a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) constituiu uma resposta às reivindicações de organizações sociais rurais representativas de uma importante parcela de agricultores brasileiros que estavam alijados do acesso ao crédito rural oficial. Desde então, o programa tornou-se a face mais evidente de um poliedro de políticas de desenvolvimento rural voltadas especificamente à agricultura familiar.

Em vista da inexistência prévia de políticas nacionais voltadas a este segmento social, o PRONAF constituiu uma das principais conquistas no processo de reconhecimento institucional do potencial socioeconômico (geração de empregos, produção de alimentos, contenção do êxodo rural, preservação do patrimônio, etc.) de um conjunto de unidades de produção que, outrora, estavam condenadas a sucumbir em face dos referenciais que imperavam na intelligentsia política e acadêmica brasileira. Segundo Mielits Neto (2011), “[...] a idéia-força que sustentou a criação do PRONAF na esfera governamental foi o reconhecimento da capacidade da agricultura familiar em absorver mão-de-obra, o que a transformou em opção privilegiada para combater parte dos problemas sociais urbanos provocados pelo desemprego rural”.

O PRONAF foi formulado no interior do Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária (MAARA). Em 1999, com a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o programa passou a ser responsabilidade da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF) no interior do novo ministério. Desde então, a gestão do PRONAF é responsabilidade desta secretaria, mas sua implantação depende da aprovação das normas de financiamento pelo CMN. Essas normas são definidas tomando por base as regulamentações do sistema financeiro, as quais ajustam o programa à lógica do mercado creditício. Mas, o arranjo regulatório também é fortemente influenciado pelas deliberações do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), fórum estabelecido em caráter consultivo que discute as demandas dos movimentos sociais e sindicais rurais e elabora sugestões para aprimoramento não apenas do crédito rural, mas do conjunto das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar (Grisa, 2012).

O CONDRAF foi constituído em 1999 com o objetivo de propor diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas. No início do Governo Lula, em 2003, o Conselho presenciou uma reformulação institucional que envolveu desde a modificação da sua nomenclatura que passa a fazer referência ao Desenvolvimento Rural, à Reforma Agrária e à Agricultura Familiar, até as suas atribuições, a saber: subsidiar a formulação de políticas públicas com o objetivo de superar a pobreza e reduzir todos os tipos de desigualdade (sociais, regionais, de gênero, geração e etnia); estimular a participação e o controle social das políticas públicas; promover a geração e a apropriação de conhecimentos científicos; estimular a diversificação das atividades econômicas nos territórios rurais; promover parcerias entre organismos governamentais e não governamentais; e propor atualizações da legislação (Mattei, 2010, p. 99).

Nota-se, portanto, que a institucionalidade produzida pelo CONDRAF converge com um enfoque territorial de desenvolvimento, focado principalmente no estimulo à participação social e no combate à pobreza e à desigualdade. Conforme o Decreto nº 4.854/2003 que dispõe sobre a composição, estruturação, competências e funcionamento do CONDRAF, compete ao Conselho, dentre outras coisas, “considerar o território rural como foco do planejamento e da gestão de programas de desenvolvimento rural sustentável, a partir das inter-relações, articulações e complementaridades entre os espaços rurais e urbanos” (Artigo 2º, § II). Ademais, também faz parte do leque de ações do CONDRAF, “propor a adequação de políticas públicas federais às demandas da sociedade e às necessidades do desenvolvimento sustentável dos territórios rurais, incorporando experiências, considerando a necessidade da articulação de uma economia territorial e a importância de suas externalidades [...]” (Artigo 2º, § IV).

Obviamente, as diretrizes de ação do CONDRAF não se refletem diretamente na estrutura de cada política pública isoladamente. Assim, enquanto algumas atendem a um referencial territorial de desenvolvimento (com foco prioritário nos pobres rurais), outras possuem um viés setorial (e são mais facilmente acessadas por agricultores familiares dos estratos superiores de renda). No caso do PRONAF, recente relatório derivado de uma pesquisa do IPEA/ PGDR/UFRGS sugere precisamente a dificuldade do programa para chegar até os agricultores “periféricos” [4], isto é, aqueles que compõem um universo de unidades de produção vulneráveis socioeconomicamente (Aquino et al., 2014)

Inicialmente as ações do PRONAF estiveram concentradas em quatros grandes linhas: financiamento da produção; financiamento de infraestruturas e de serviços básicos municipais; capacitação e profissionalização; e negociação com os órgãos setoriais para “promover o ajustamento de políticas públicas à realidade dos agricultores familiares” (Brasil, MAPA, 1996, p.14). Neste sentido, como nota Grisa (2012), para além de uma política estrita de crédito rural, o Programa nasceu com um escopo mais amplo, abarcando ainda recursos voltados à promoção de infraestruturas e serviços básicos, bem como capacitação e profissionalização de gestores das políticas. É a partir de 2003 que ocorre uma reformulação que leva ao desmembramento de algumas políticas (em particular a extinção do PRONAF Infraestrutura e Serviços e a criação do PRONAT), tornando-o basicamente uma política de crédito rural de custeio e investimento (Cazzela, Mattei e Delgado, 2002).

Antes disso, contudo, algumas mudanças importantes já haviam sido processadas. Em 1997, como decorrência das mobilizações realizadas no ano anterior no Rio Grande do Sul, em decorrência da estiagem que assolava o estado (Picolotto, 2011), lideradas pelo recém constituído Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), foi criado o PRONAF especial de custeio (“Pronafinho”), direcionado aos agricultores menos capitalizados. Um ano depois, em 1998, é criada uma linha especial para incentivo ao beneficia mento e agregação de valor aos produtos agropecuários. O PRONAF Agroindústria apresenta-se como uma nova opção para um problema crônico dos agricultores familiares que se viam impossibilitados de processar e comercializar seus produtos.

Outra mudança particularmente importante para a operacionalização do PRONAF ocorreu com a publicação das Resoluções do CMN nº 2.629 de 1999, nº 3.097 de 2003 e nº 3.206 de 2004, a partir das quais o programa passa a classificar os agricultores em grupos de acordo com a renda, condição socioeconômica e se beneficiários da reforma agrária (A, B, A/C, C, D e E). A partir dessa classificação, os agricultores passaram a dispor de valores financiados, taxas de juros, prazos e condições de pagamento diferenciadas. Para Delgado, Leite e Wesz Jr. (2010), essa classificação reconhecia a diversidade no interior da agricultura familiar, tornando a política mais adaptada a este público. A criação dos grupos D e E, a partir da resolução de 2004, também evidenciou uma preocupação dos gestores em atender agricultores familiares que se encontravam em estágios de capitalização superiores, favorecendo a participação de agricultores familiares “consolidados”, os quais efetivamente passaram a acessar uma parcela crescente e predominante dos recursos do Programa.

Neste mesmo período também é criada uma série de novas linhas de financiamento: PRONAF Floresta (2002), PRONAF Alimentos (2003), PRONAF Agroecologia (2003), PRONAF Turismo Rural (2003), PRONAF Mulher (2003), PRONAF Jovem Rural (2003), PRONAF Semi-Árido (2003) e PRONAF Máquinas e Equipamentos (2003). Trata-se igualmente de uma tentativa de adequar o programa à diversidade social e produtiva da agricultura familiar, incentivando determinados grupos sociais que encontravam dificuldades para acessar o crédito, se relacionar com os bancos e exercer suas próprias escolhas produtivas no seio da unidade familiar de produção (mulheres e jovens); de regiões (semi-árido) que necessitavam de condições especiais de crédito em face da presença de condições socioambientais particulares; ou de atividades econômicas específicas (turismo, florestas, agroecologia) que se visavam incentivar novas fontes de renda ou sistemas produtivos sustentáveis.

Em 2006, a promulgação da Lei da Agricultura Familiar consolida uma definição de agricultura familiar muito próxima àquela que o PRONAF já vinha adotando como parâmetro para a concessão do crédito.

Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família” (Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, Art. 3).

Com efeito, a promulgação da lei não acarretou mudanças significativas na operacionalização do PRONAF e das políticas públicas a ele relacionadas. No entanto, ela foi fundamental para reconhecer institucionalmente esta categoria social. Assim, por um lado, os desdobramentos dessa regulamentação foram particularmente importantes para consolidar a participação da agricultura familiar em um conjunto de políticas públicas, seja aquelas onde ela compõe o público exclusivo (PAA, SEAF, PGPAF) [5], seja aquelas onde ela passa a usufruir de uma condição especial para acesso a parcela dos recursos que lhe são exclusivamente destinados (PNAE, PGPM) [6]. Por outro lado, o estreito vínculo entre a regulamentação aprovada e as próprias regras em vigência para o PRONAF fizeram com que a lei reafirmasse um determinado referencial “setorial” de agricultura familiar (já manifesto no PRONAF), sem questionar a possibilidade de definições alternativas

Entre 2007 e 2009 mais um conjunto importante de mudanças ocorreram no PRONAF. Por um lado, foram estabelecidas novas linhas de financiamento atendendo reivindicações específicas de apoio a sistemas sustentáveis (PRONAF Eco, 2007), modernização da base técnica (Mais Alimentos, 2008) e alteração da lógica do crédito, que reproduzia o modelo de especialização agrícola (PRONAF Sustentável, 2009). Por outro lado, em 2008, os grupos C, D e E foram reclassificados em uma única categoria genérica nomeada “agricultores familiares” (Categoria “V”), os quais podem acessar diferentes valores com taxas de juros anuais diferenciadas em decorrência do próprio montante de recursos financiado. Essa mudança decorre fundamentalmente das dificuldades operacionais e da enorme confusão no enquadramento dos agricultores, o que se mostrava particularmente problemático para as categorias C, D e E, cujas normas de acesso eram muito similares, variando fundamentalmente em função dos limites de renda, um critério de difícil aferição na agricultura e de ampla variação entre diferentes safras.

Dentre as novas linhas criadas, aquelas que suscitaram maior interesse foram o PRONAF Sustentável (também chamado de “PRONAF Sistêmico”) e o PRONAF Mais Alimentos. Este último se tornou a linha de investimento do PRONAF, financiando a modernização da infraestrutura produtiva nos estabelecimentos e áreas comunitárias rurais. Por sua vez, o PRONAF Sustentável consistiu em uma tentativa de romper com a lógica setorializada que sempre predominou no crédito rural. Para tanto, propunha articular crédito, assistência técnica, conservação e recuperação ambiental e desenvolvimento dos estabelecimentos familiares a partir de projetos que integrassem sistemicamente diferentes atividades produtivas (nas demais linhas, o financiamento focaliza “o cultivo” e não “a unidade de produção como um todo integrado de forma sistêmica”).

Para tanto, o PRONAF Sustentável articulava a assistência técnica ao crédito rural. Por meio de chamadas públicas de ATER contratavam-se grupos de técnicos para atuar em uma região específica. Estes deveriam realizar diagnósticos e coordenar planejamentos comunitários participativos com vistas a definir projetos mais adequados às condições produtivas, sociais, econômicas, culturais e ambientais dos estabelecimentos rurais. Contudo, face à complexidade dos projetos, falta de capacitação técnica dos extensionistas e dificuldade de adequação do próprio sistema de crédito, o PRONAF Sustentável beneficiou poucas unidades familiares e, via de regra, esteve associado a experiências bastante pontuais. Assim, os gestores consideraram adequado não dar prosseguimento às ações desta linha tal qual inicialmente planejado. Nos últimos dois anos o PRONAF Sustentável não foi sequer referido nos Planos Safras da Agricultura Familiar (BRASIL, MDA, 2012; 2013). A alteração da lógica produtiva do crédito rural parece mais difícil de ser alterada do que inicialmente se supunha.

Ao longo desta trajetória brevemente resumida acima, o PRONAF ainda revelou: (a) considerável ampliação dos recursos disponibilizados (R$ 24 bilhões para a safra 2014/2015 face aos R$ 4,2 bilhões na safra 2002/2003); (b) redução substancial das taxas de juro (dos 16% a.a. em 1995, na sua criação, para, no máximo, 3,5% a.a. em 2014, sendo que várias linhas possuem taxas entre 1 e 2% a.a.); (c) aumento dos limites de financiamento por estabelecimento e grupos (de R$ 130 mil para R$ 150 mil por contrato, havendo ainda diferenciais no caso de determinadas atividades produtivas); (d) ampliação do limite da renda bruta dos agricultores para fins de enquadramento (de R$ 230 mil para R$ 360 mil anuais); e (e) expansão para todo o território nacional, cobrindo mais 5.454 municípios brasileiros (dentre um total de 5.570).

Inúmeras análises sobre a trajetória do PRONAF têm apontado para alguns efeitos importantes da política de crédito diferenciado. Por um lado, cita se a contribuição do programa para a melhoria das condições de produção e de vida da população rural; para injeção de liquidez nas economias locais e para a modernização das estruturas produtivas nos estabelecimentos rurais. Por outro lado, dentre as críticas mais recorrentes cita-se: (a) a dificuldade em romper com algumas características que historicamente definiram a organização do crédito rural oficial, em particular o incentivo à especialização em cultivos comerciais de commodities agrícolas e, associado à isso, a concentração dos recursos em determinadas regiões (sul e sudeste) e grupos de produtores (familiares dos estratos mais capitalizados); (b) a fraca cobertura aos grupos A (assentados) e B (microcrédito) em termos de volume de recursos; (c) a dificuldade de execução das diferentes linhas de financiamento que foram criadas, mantendo-se a concentração dos recursos nas linhas mais tradicionais de custeio e investimento; (d) a dificuldade de integração dos projetos de crédito com a ação da extensão rural, aumentando o risco de fracasso dos projetos; (e) associado a isso, a elevação dos níveis de endividamento de alguns grupos de agricultores; (f) a exclusão de determinados segmentos mais empobrecidos do acesso ao crédito, em particular das comunidades tradicionais, seja em virtude da burocracia para o acesso, das exigências do programa (eg. regularização fundiária) ou da inadequação dos projetos ao perfil sociocultural e produtivo desses grupos. (Aquino e Schneider, 2011; Bittencourt, 2003; Guanziroli, 2007; Grisa, 2012).

Para Magalhães e Abramovay (2006), dentre os impactos do PRONAF, “o mais importante, porém – que são os impactos que dele se pode esperar no combate durável à pobreza e na geração de renda que é sua pré-condição – ainda não foi alcançado” (p. 20). Esta conclusão dos autores coloca uma questão-chave: afinal, qual a capacidade do PRONAF em estabelecer-se como uma política de enfrentamento da pobreza rural e/ou favorecer a ação de outras políticas que atuam neste sentido? Para responder esta questão, cabe inicialmente sublinhar que este objetivo jamais constituiu uma prioridade da política de crédito rural, inclusive do PRONAF se considerarmos suas principais linhas de financiamento. Documento do próprio MAPA evidencia que, quando da criação do PRONAF, ainda no âmbito deste ministério, o mesmo não detinha este intento:

Seria ilusório imaginar que o PRONAF pudesse atingir o conjunto daquilo que o Censo Agropecuário define como estabelecimentos agropecuários, e que têm menos de quatro módulos fiscais. Em muitas regiões do País, a maioria desses estabelecimentos não reúne as condições mais elementares para se credenciar ao recebimento do crédito rural em condições economicamente sustentáveis. O crédito só pode ser destinado a agricultores que tenham condições de obter, com a sua utilização, uma renda capaz de garantir, ao menos, a manutenção da família e o reembolso do empréstimo. O PRONAF crédito não é um programa de assistência social, mas um conjunto de mecanismos destinados a remover os obstáculos que impedem o acesso dos agricultores familiares ao mercado. Ele supõe um mínimo de condições produtivas, sem as quais os recursos por ele mobilizados não poderiam ser potencializados. (Brasil, MAPA, 1998, p.40).

A análise apresentada por Grisa (2010) acerca do referencial do PRONAF enquanto política pública ratifica esta compreensão. A rigor, diversos estudos já sinalizaram para a reprodução de um referencial produtivista no PRONAF, alegando que o mesmo mantém a lógica do crédito tradicional, beneficiando agricultores familiares mais capitalizados, localizados sobretudo no Sul do Brasil e produzindo commodities agrícolas com elevada utilização de insumos externos (Sabourin, 2009; Toledo, 2009; Mattei, 2006; Kageyama, 2003). Mesmo a transferência do programa para o MDA não foi capaz de provocar alterações profundas nesse sentido. Isso se deve à vários fatores, incluindo o fato desse referencial ser predominante não apenas entre os gestores da política (seja nos ministérios especificamente voltados ao rural, seja nos órgãos que regulamentam o sistema financeiro), mas também dentro do próprio universo acadêmico e dos movimentos sociais e sindicais vinculados à agricultura familiar.

Esta conclusão é válida para uma leitura do PRONAF enquanto política unificada, considerando o amplo predomínio dos recursos destinados aos projetos tradicionais de custeio e financiamento. Contudo, como também evidenciado por Grisa (2010; 2012), a proliferação das linhas do Programa, muitas das quais criadas em resposta às críticas que lhe foram dirigidas, revelam a emergência de referenciais alternativos de desenvolvimento no seu interior. Este é o caso, por exemplo, do PRONAF Agroecologia, Semiárido, Eco, Sustentável, Mulher e Agroindústria, os quais incentivam atividades, projetos e públicos com perfis distintos. Mas, até o momento, essas linhas têm recebido um aporte menos significativo de recursos e, o que é mais grave, sequer esses recursos são efetivamente acessados pelos agricultores, mesmo dentre aqueles que desenvolvem atividades com viés claramente adequado às condições diferenciadas oferecidas por essas modalidades. Isso se deve a inúmeros fatores que envolvem o desconhecimento dos agricultores em relação às possibilidades de financiamento; o despreparo dos agentes financeiros para operar as novas linhas; a incapacidade dos técnicos para elaborar projetos adequados às exigências de financiamento; a preferência dos técnicos e agentes financeiros em atuar com linhas tradicionais cujo funcionamento é de amplo conhecimento; a burocracia para comprovação das exigências e execução das ações.

Finalmente, no que tange especificamente à questão do combate à desigualdade e à pobreza rural, cabe mencionar o papel do Microcrédito Rural, também chamado de “PRONAF B” em virtude desta linha dirigir-se especificamente para este grupo de agricultores familiares com menor renda. De acordo com as tabulações especiais do Censo Agropecuário 2006 apresentadas por Aquino et al. (2014), o público potencial do PRONAF B é formado por 2.416.127 estabelecimentos, o que representa 46,68% de todos os estabelecimentos agropecuários do Brasil. No entanto, segundo os autores, esse grupo revela “baixa participação nas políticas criadas para apoiar a agricultura familiar” (p. 27), tendo recebido apenas 7,72% dos recursos totais do PRONAF no Brasil, ao passo que os grupos D e E, que representam parcela minoritária do público potencial do PRONAF (7,04% e 1,54%, respectivamente), acessaram 56,05% do recurso. Assim, concluem os autores, “[...] o PRONAF, em vez de diminuir as desigualdades sociais, pode estar levando a um acirramento destas no âmbito do universo de agricultores familiares brasileiros” (p. 27). Ao mesmo tempo, o estudo alerta para a necessidade de repensar a estratégia de combate à pobreza por meio da articulação do PRONAF a outras políticas estruturantes de desenvolvimento rural.

Em suma, dentre os principais desafios colocados ao PRONAF está sua dificuldade em ampliar a participação dos agricultores menos capitalizados e, sobretudo, fazer isso de modo integrado a outras políticas públicas. Os últimos quarenta anos demonstraram o equívoco das políticas de crédito voltadas à inserção produtiva dos agricultores mais pobres em um modelo no qual eles não possuem condições de suportar o crescente squeeze da agricultura moderna (Schneider e Niederle, 2010). O resultado desta inserção subordinada aos “impérios alimentares” (Ploeg, 2008) acaba revertendo-se na incapacidade de pagamento dos financiamentos e no comprometimento da autonomia do agricultor, quando não da sua permanência na unidade de produção.

Rupturas e continuidades: do PRONAF ao PRONAT

O PRONAF comportou ainda outra linha de financiamento que esteve, de certo modo, mais diretamente associada a estratégias de combate à pobreza rural. Trata-se do PRONAF Infraestrutura e Serviços, instituído em 1997, logo após a criação do programa. Esta linha foi criada com o objetivo de melhorar as condições de produção e de infraestrutura nos municípios rurais através do financiamento a projetos municipais de desenvolvimento. Para tanto, pressupunha o envolvimento das comunidades rurais na concepção, gestão e fiscalização das políticas públicas, o que levou o governo a estimular formas de gestão descentralizadas e participativas dos recursos e projetos. Na origem desta ideia estava a constatação de que um dos principais problemas encontrados nas estratégias de combate à pobreza e desigualdade era a insuficiência de capital social nas regiões rurais (Abramovay, 2003).

Deste modo, para os municípios acessarem os recursos do Programa foi estabelecida uma metodologia de elaboração de projetos que previa a participação de sindicatos, ONGs, associações de produtores e prefeituras. Isso levou à constituição de um espaço público de negociação cuja atribuição era coordenar as ações e estimular a formulação de estratégias inovadoras de desenvolvimento. Assim, os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDR) se consolidaram associados ao PRONAF, buscando constituir-se como espaço de articulação entre Estado e Sociedade Civil. Como revelam Schneider, Mattei e Cazella (2004), a importância dos CMDRs foi então reforçada pela Resolução nº 28, de 28 de fevereiro de 2002, a qual definiu esses espaços como instâncias de planejamento, coordenação e fiscalização do PRONAF.

Não obstante, a linha Infraestrutura e Serviços claramente destoava das demais no que tange ao seu mecanismo de gestão, o que levou a sua exclusão do PRONAF. Mas ela se tornou o embrião do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais - PRONAT, criado em 2003, com objetivos similares, mas com uma abrangência não mais municipal, mas territorial. Ao mesmo tempo, a estrutura dos CMDR serviu de modelo para a estruturação de Colegiados Territoriais, também reunindo atores da sociedade civil e do Estado em composição paritária. Deste modo, pode-se afirmar que o PRONAF, e mais especificamente esta linha, esteve intimamente relacionada à formulação de uma política territorial que, ao longo da última década, se tornou objeto privilegiado das discussões em torno de uma estratégia de desenvolvimento para o meio rural.

Atualmente, se o PRONAT reproduz algumas virtudes e limites dos mecanismos tradicionais do crédito rural, sobretudo no que diz respeito ao tipo de projeto financiado (muitas vezes centrados em atividades agropecuárias tradicionais com baixo nível de inovação), isso deve-se parcialmente à esta “dependência de caminho” da política pública. De fato, a organização do PRONAT é herdeira dos erros e acertos do PRONAF Infraestrutura e Serviços. Esta linha voltava-se a municípios com estrutura relativamente precária, aos quais destinava cerca de R$ 150 mil anuais durante quatro anos, direcionados a ações definidas pelos Planos Municipais de Desenvolvimento Rural (PMDRs), discutidos no âmbito dos CMDRs. A existência desses conselhos, compostos de modo paritário entre atores governamentais e entidades representativas dos agricultores familiares, tornou-se obrigatória para o recebimento dos recursos. Assim, a criação de uma instância colegiada constituiu-se em uma importante inovação institucional que buscava romper com a exclusividade das prefeituras na implementação das políticas (Leite e Wesz Jr., 2011).

Quando da criação do PRONAT, as modalidades “Infraestrutura e Serviços Municipais” e “Capacitação dos Agricultores Familiares” foram retiradas do PRONAF, o qual foi restringido simplesmente ao crédito rural. Por sua vez, ao PRONAT foram ainda agregadas duas outras modalidades: “Assistência Financeira Mediante Emendas Parlamentares” (AFEM) e “Projeto Dom Helder Câmara (PDHC) de Desenvolvimento Sustentável para os Assentamentos da Reforma Agrária no Semiárido do Nordeste”. Além disso, em 2007, instituiu-se a ação “Fomento aos Empreendimentos Associativos e Cooperativos da Agricultura Familiar e Assentamentos da Reforma Agrária” e, em 2008, criou-se uma linha voltada à conservação e manejo sustentável da agrobiodiversidade [7].

A Secretária de Desenvolvimento Territorial do MDA é responsável por definir as normas para construção dos projetos, uso dos recursos e prazos. As Delegacias Estaduais do MDA intermediam a organização dos projetos junto aos Colegiados Territoriais. Os Colegiados aprovam os projetos, os quais (com exceção de alguns recursos de custeio recebidos por organizações não governamentais) são geralmente encaminhados pelas prefeituras municipais [8]. Finalmente, os projetos aprovados no Colegiado Territorial são necessariamente encaminhados à Câmara Técnica do CEDRAF responsável por analisá-los e encaminhá-los à aprovação do CONDRAF. Somente a partir desse momento o projeto é repassado para análise técnica da SDT/MDA em, caso aprovado, esta autoriza a Caixa Econômica Federal a repassar os recursos para execução do mesmo.

Para que um território seja incorporado ao programa, é necessário atender a alguns critérios: os municípios devem possui no máximo 80 habitantes por Km², não ultrapassando um total de 50 mil pessoas por município; ter uma representação consolidada da sociedade civil e do poder público; e o Estado deve possuir um conselho estadual de desenvolvimento rural sustentável (CEDRS), responsável por analisar os projetos territoriais antes de submetê-los ao CONDRAF. Acrescenta-se ainda mais um critério relativo a presença da agricultura familiar. Se um território possuir um percentual superior a 50% de estabelecimentos classificados nos termos da Lei da Agricultura Familiar, ele pode ser incorporado ao Programa, mesmo que não cumpra a norma relativa a densidade populacional acima descrita. A partir de 2013, com o reconhecimento de 74 novos territórios, o país passou a contar com 239 territórios rurais, o que abarca um total de 1.072 municípios e 65 milhões de pessoas [9].

A criação do PRONAT trouxe indubitavelmente novidades, particularmente no que se refere ao reconhecimento de que as estratégias de desenvolvimento rural deveriam romper com os limites impostos pela tradicional dicotomia rural-urbano e pelas fronteiras municipais. Assim, ao longo da última década, o referencial do desenvolvimento territorial adentrou aos discursos dos atores locais e dos gestores públicos, mas portando significados bastante heterogêneos. Em alguns casos, a criação do “território”, como uma escala intermediária entre o município e o estado, é compreendida apenas como uma nova regionalização da ação pública, com o agravante de diferentes órgãos ou níveis de governo trabalharem com recortes territoriais distintos, o que dificulta a articulação das políticas pelo simples descompasso espacial das políticas.

Dentre os principais obstáculos a ampliação desta nova abordagem, nota-se o peso da estrutura federativa brasileira e a inexistência de um marco jurídico adequado à gestão territorial, o que dificulta imensamente a criação de mecanismos de governança para tornar o território um espaço efetivo de planejamento e execução de políticas. Dez anos após a criação do PRONAT, ainda hoje as experiências de integração administrativa intermunicipal mostram-se bastante limitadas. A solução para a inexistência formal do território (como ente federado capaz de gerir recursos públicos) está centrada, principalmente, na experiência de consórcios públicos intermunicipais – uma estrutura jurídica criada por lei com a finalidade de executar a gestão associada de serviços públicos onde os entes consorciados são os municípios –, mas os mesmos ainda revelam inúmeros problemas, sobretudo em virtude das fragilidades operacionais que fazem com que existam apenas formalmente, sem capacidade efetiva de gestão.

Ao mesmo tempo, as articulações entre os níveis territorial e municipal ainda são frágeis. Formados a partir do final dos anos 1990, os CMDRs aglutinaram as entidades governamentais e da sociedade civil ligadas à agricultura e ao rural. Essa articulação potencializou o trabalho de construção do território, uma vez que as bases do diálogo entre os atores do Estado e da Sociedade Civil estavam sendo igualmente assentadas no âmbito dos municípios. Por sua vez, a criação do PRONAT contribuiu para dar vida aos CMDR, que, em muitos casos, possuíam um papel meramente legitimador das ações do poder executivo municipal. Assim, quando o PRONAT passou a financiar projetos diferenciados de desenvolvimento rural, os CMDR serviram como meio de articulação para criar a estrutura organizacional necessária à proposição e implementação dos projetos. No entanto, para além disso, há uma agenda em aberto no que diz respeito conexão entre os projetos locais e territoriais, bem como entre a dinâmica dos conselhos municipais e aquela que se estabelece nos Colegiados Territoriais. De modo geral, enquanto estes priorizam uma abordagem territorial focada, sobretudo, em políticas voltadas a um segmento mais vulnerável da população rural, grande parte dos CMDRs mantém sua atuação fortemente associada à operacionalização do PRONAF e políticas a ele associadas (incluindo o uso da infraestrutura pública), sendo menos evidentes as discussões acerca da construção de estratégias intermunicipais de desenvolvimento.

De modo mais problemático, contudo, nota-se que, em ambos casos, no município e no território, muitos projetos e investimentos continuam voltados para a reprodução de estratégias pouco inovadoras (Zimmermann et al., 2014; Favaretto, 2010). Muitos territórios reproduzem a alternativa já criticada do “más de lo mismo” (Schejtman e Berdegué, 2003), que, em nome de um novo modelo de desenvolvimento, acabam por reforçar atividades tradicionais com foco no crescimento da produção agropecuária – não raro a partir do investimento nas cadeias de commodities agrícolas –, os quais já revelaram seus limites no que tange à potencialização de uma estratégia de “desenvolvimento territorial endógeno” (Schneider, 2004). Neste caso, nota-se que os limites de uma abordagem territorial não residem apenas na inexistência de uma institucionalidade que regulamente a existência de uma escala espacial intermediária (papel outrora atribuído às microrregiões geográficas), mas, sobretudo, à dificuldade de incorporar um referencial de desenvolvimento territorial que efetivamente confira um novo significado ao rural e aos atores que o habitam, que, de lugar de produção transforma-se em espaço de vida (Wanderley, 2009).

Neste sentido, cabe notar ainda uma conexão frágil entre as políticas de transferência de renda que visam os “pobres rurais” (em particular o Programa Bolsa Família) e os projetos levados à cabo nos territórios, especialmente aqueles com foco na agregação de valor aos produtos agropecuários [10]. Enquanto alguns investimentos produtivos revelam-se distantes das necessidades dos grupos mais empobrecidos, as políticas de transferência de renda convivem com o crônico desafio da inclusão socioeconômica. Essa situação acaba reforçando o referencial modernizante citado à introdução que aponta para uma segregação entre os segmentos sociais aptos a “produzir o desenvolvimento”, e aqueles aos quais são conferidos apenas os meios básicos de reprodução social.

Mesmo assim, avanços importantes foram processados não apenas no que tange à articulação entre Sociedade Civil e Estado, mas, e talvez de modo ainda mais significativo, no interior de cada um deles. Nos territórios onde o processo foi capitaneado pelos atores do Estado, a política territorial contribuiu ao menos para um processo de aprendizagem técnica e institucional, capacitando os gestores tanto no monitoramento do uso adequado dos recursos quanto na administração de aspectos operacionais que facilitam a formulação e a execução dos projetos. Por sua vez, nos territórios onde as organizações da Sociedade Civil assumiram uma posição hegemônica nos colegiados, visualiza-se um importante processo de articulação e aprendizado de organizações que outrora estavam desconectadas e com potencial reduzido de intervenção social. Um efeito importante desse processo é a constituição de uma pauta propositiva por parte dos movimentos sociais, superando seu viés estritamente reivindicatório.

Destaca-se ainda o modo como o território estabelece novas arenas sociais (em particular os Colegiados) para as lutas por reconhecimento e cidadania capitaneadas por inúmeros grupos do meio rural. Essas lutas dizem respeito à legitimação de valores e práticas culturais que são a expressão da singularidade da organização socioprodutiva e da identidade social de diferentes comunidades tradicionais [11], sobretudo daquelas cuja presença foi invisibilizada pela bruma modernizante que ocupou todos os espaços do discurso do desenvolvimento nas últimas cinco décadas. Mesmo naqueles territórios em que os representantes dessas comunidades ainda encontram-se distantes do centro de decisão acerca dos projetos territoriais, nota-se que a exclusão dos mesmos não ocorre sem um tensionamento entre as escolhas locais e os objetivos da ação pública, institucionalizados nos princípios que orientam a política territorial (Cavalcanti, Wanderley e Niederle, 2014).

Considerações finais

Esta breve análise da sociogênese da política territorial sugere que suas principais fragilidades não advêm do equívoco de uma abordagem territorial do desenvolvimento que concebe a contribuição da agricultura familiar para além da produção agropecuária, e que abre espaço para a reinserção econômica de agricultores e comunidades mais pobres. De outro modo, as dificuldades de operacionalização desta abordagem estão primeiramente associadas à premência de outro modelo, setorial e produtivista, no seio do quadro institucional e das estruturas de governança e gestão dos territórios, o que se reflete no próprio perfil dos projetos territoriais implementados.

Neste sentido, pode-se questionar em que medida se sustentam as teses que advogam uma suposta incapacidade da agricultura familiar em responder aos anseios do desenvolvimento, vis-à-vis a prevalência de um referencial de desenvolvimento que tem se traduzido em projetos inadequados ao contexto sociocultural das populações rurais mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, trata-se de um posicionamento que, diferentemente daquele produzido por muitos autores na década de 1990 em torno do mote de um novo mundo rural brasileiro (Silva, 1996) – que reconheciam a pluriatividade da agricultura familiar como uma alternativa à crise de reprodução social da pequena produção agrícola –, alude para as possibilidades de inclusão produtiva desses estabelecimentos como uma opção estratégica em face de um novo referencial, que reconheça o território e sua multifuncionalidade como eixos articuladores de uma nova trajetória de desenvolvimento rural sustentável e solidário.

Embora não sejam exatamente originais, essas discussões são objeto de um esforço renovado de trabalho no Brasil contemporâneo. No final de 2013, o CONDRAF inaugurou o debate sobre a construção de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (SNDRSS). Em discussão nos mais diversos fóruns que compõem as instâncias de governança do desenvolvimento rural no Brasil, a criação desse sistema tem como escopo prioritário a formulação de um marco legal para a gestão social das políticas públicas nos territórios rurais, os quais se tornariam uma unidade fundamental de planejamento e execução das ações previstas no Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PNDRSS), este igualmente em construção. Ainda embrionária, a criação do Sistema e do Plano anima as discussões sobre a necessidade de uma nova geração de políticas para a agricultura familiar, que respondam a um referencial de desenvolvimento territorial, integrando as políticas setoriais a partir de novas diretrizes e objetivos, agora voltadas para o reconhecimento, a inclusão e a participação cidadã da diversidade de atores sociais que povoam o meio rural brasileiro. Mais duas décadas serão necessárias para que uma análise seja produzida sobre a efetividade dessas mudanças.

 

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[1]  Ademais, neste ano contribui para isto a disputa eleitoral envolvendo a eleição presidencial, que opõe projetos distintos para a agricultura e o meio rural brasileiros.

[2]  À título de exemplo, um novo elemento desta discussão é o recrudescimento de conflitos agrários envolvendo grupos que estavam quase indistintamente abrigados pela noção guarda-chuva da “agricultura familiar”. Este é o caso das recentes disputas pela posse da terra entre comunidades indígenas/ tradicionais e pequenos agricultores familiares, estes tendo colonizado terras que atualmente são novamente reconhecidas como patrimônio de suas comunidades originárias.

[3]  Para os adeptos dessa perspectiva, trata-se, fundamentalmente, de uma discussão acerca das possibilidades de “ganhar tempo” até que essas famílias mais empobrecidas sejam atraídas para as cidades em decorrência da expansão do mercado de trabalho urbano-industrial (Alves e Rocha, 2010).

[4]  O termo advém de uma classificação estabelecida pelo Relatório FAO/INCRA (1996), no qual um conjunto de estudiosos propõe classificar a agricultura familiar em três grupos: consolidados, em transição e periféricos. Ao mesmo tempo, o Relatório sugere que o foco das políticas governamentais deveria ser a categoria intermediária visando torná-la consolidada, enquanto que para os periféricos deveriam ser elaboradas políticas agrárias e sociais (Grisa, 2012).

[5]  Respectivamente, Programa de Aquisição de Alimentos, Seguro da Agricultura Familiar e Programa de Garantia de Preços da Agricultura Familiar.

[6]  Respectivamente, Programa Nacional de Alimentação Escolar e Política de Garantia de Preços Mínimos e Comercialização.

[7]  Atualmente, o PRONAT conta com nove modalidades ou linhas de ação: (1) Monitoramento, gestão e administração do programa; (2) Elaboração dos Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável - PTDRS; (3) Apoio à gestão dos PTDRS; (4) Capacitação de agentes de desenvolvimento; (5) Cooperativismo; (6) Desenvolvimento sustentável para os assentamentos da reforma agrária no semiárido do Nordeste (PDHC); (7) Fortalecimento e valorização de iniciativas territoriais de manejo e uso sustentável da agrobiodiversidade; (8) Infraestrutura e serviços em territórios rurais; (9) Assistência financeira mediante emendas parlamentares.

[8]  Respectivamente, Programa Nacional de Alimentação Escolar e Política de Garantia de Preços Mínimos e Comercialização.

[9]  Destes, 120 também são reconhecidos como Territórios da Cidadania em virtude de sua inclusão em um programa homólogo criado em 2008, e cujo objetivo central é a promoção da articulação de políticas públicas de diversos ministérios e órgãos de Estado com foco na redução da pobreza e das desigualdades. Ambos os Programas (PRONAT e PTC) possuem organização e execução intimamente conectados, aspecto que não poderá ser discutido neste artigo. Neste sentido, veja: Cavalcanti, Wanderley e Niederle (2014), Favaretto (2010) e Leite (2013).

[10]  Como afirmam Zimmermann et al. (2014, p. 568), “Em relação ao PRONAT, observou-se que certos municípios – não raro, aqueles onde a pobreza não é tão expressiva vis-à-vis os demais – concentram os projetos apoiados pelo programa e estes destinam-se às populações rurais (dentre a agricultura familiar) mais organizadas e estruturadas economicamente. [...] Ademais, há certa reprodução de projetos “convencionais” relacionados à produção agrícola, carecendo de ações que contribuam para mudanças estruturais na condição de vida da população local e que sejam inovadores no sentido de promover a diversificação das atividades econômicas e a valorização de distintos modos de vida. A redução da pobreza rural dos territórios geralmente não consiste em um objetivo explícito e prioritário dos projetos territoriais, ainda que os resultados destes e seus efeitos sinérgicos possam colaborar neste sentido.”.

[11]  De acordo com o Decreto n. 6.040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.