REVISTA 95.2 Revista Relaciones Internacionales Julio-Diciembre de 2022 ISSN: 1018-0583 / e-ISSN: 2215-4582 doi: https://doi.org/10.15359/ri.95-2.5 |
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Organizações Criminosas e Governança Híbrida na América do Sul: O contexto da COVID-19 Organizaciones Criminales y Gobernanza Híbrida en Sudamérica: El Contexto de la COVID-19 Criminal Organizations and Hybrid Governance in South America: The COVID-19 scenario Marcos Alan Ferreira1 ORCID: 0000-0002-3196-6508 |
Resumo
O presente ensaio discute como as organizações criminosas na América do Sul se reconfiguraram diante do cenário pandêmico vivenciado desde finais de 2019. Em particular, examina-se como as práticas e ações conduzidas por estas agremiações foram levadas adiante na pandemia, mantendo ou até mesmo dando mais força à influência do crime na vida da sociedade sul-americana. Argumenta-se que para compreender a governança criminal é central considerar a discussão de como os territórios em que estas organizações atuam não são conflitantes com o Estado, mas sim há uma governança híbrida em que coexistem as organizações criminosas e o Estado como duas fontes de legitimidade e autoridade. Há uma complementaridade de ações, na qual se viu durante a pandemia as organizações criminosas ocupando funções do Estado para adoção de medidas protetivas, provisão de assistência, mas sempre com um objetivo claro de manutenção do status quo de suas atividades ilícitas. Ao final, nota-se que as organizações criminosas se consolidaram como espaço de governança reconhecido como legítimo durante a pandemia, complementando e, talvez até, eclipsando o papel da burocracia estatal diante da gravidade da emergência sanitária vivenciada, especialmente nos casos de Brasil e Colômbia.
Palavras-chave: América do Sul; Brasil; Colômbia; Governança híbrida; Organizações Criminosas; Pandemia.
Resumen
Este ensayo analiza cómo las organizaciones criminales en América del Sur se han reconfigurado frente al escenario de pandemia vivido desde finales de 2019. En particular, examina cómo las prácticas y acciones realizadas por estas asociaciones se llevaron adelante en la pandemia, manteniendo o; incluso, dando fuerza a la influencia del crimen en la vida de la sociedad sudamericana. Se argumenta que para entender la gobernanza criminal es fundamental considerar la discusión de cómo los territorios en los que operan estas organizaciones no están en conflicto con el Estado, sino que existe una gobernanza híbrida en la que conviven las organizaciones criminales y el Estado como dos fuentes de legitimidad y autoridad. Hay una complementariedad de acciones, en las que se vieron organizaciones criminales durante la pandemia ocupando funciones del Estado para adopción de medidas de protección, prestación de asistencia, pero siempre con un claro objetivo de mantener el statu quo de sus actividades ilícitas. Al final, se advierte que las organizaciones criminales se han consolidado como un espacio de gobernanza reconocido como legítimo durante la pandemia, complementando y, quizás incluso, eclipsando el papel de la burocracia estatal ante la gravedad de la emergencia sanitaria vivida, especialmente en los casos de Brasil y Colombia.
Palabras-clave: América del Sur; Brasil; Colombia; gobernanza híbrida; organizaciones criminales; pandemia.
Abstract
This essay discusses how criminal organizations in South America have reconfigured themselves in the face of the pandemic scenario experienced since late 2019. In particular, it examines how the practices and actions carried out by these associations were carried forward in the pandemic, maintaining or even giving force the influence of crime on the life of South American society. It is argued that in order to understand criminal governance, it is essential to consider the discussion of how the territories in which these organizations operate are not in conflict with the state, but rather there is a hybrid governance in which criminal organizations and the state coexist as two sources of legitimacy and authority. There is a complementarity of actions, in which criminal organizations were seen during the pandemic occupying state functions in the adoption of protective measures, and provision of assistance, but always with a clear objective of maintaining the status quo of their illicit activities. In the end, it is clear that criminal organizations have consolidated themselves as a governance space recognized as legitimate during the pandemic, complementing and, perhaps even, eclipsing the role of state bureaucracy in the face of the seriousness of the health emergency experienced, especially in the cases of Brazil and Colombia.
Keywords: Brazil; Colombia; criminal organizations; hybrid governance; pandemic; South America.
A pandemia da COVID 19 afetou igualmente os três componentes centrais que fundamentam uma sociedade: indivíduos, instituições e comunidades. O silencioso inimigo ceifou vidas de milhares de latino-americanos, trouxe intenso sofrimento social e psicológico, impôs desafios inéditos ao Estado e impactou comunidades independentemente de classe ou posição social.
Neste contexto, todas as esferas da sociedade, sem exceção, tiveram que se adaptar a um chamado “novo normal”. Mesmo aquelas entidades que conduzem atividades consideradas ilícitas pelas leis dos países, como é o caso do narcotráfico e grupos milicianos, tiveram que repensar suas ações e seu modo de controle de mercados ilegais e territórios. Não havia como simplesmente negligenciar uma realidade pandêmica em que um inimigo invisível estava à espreita pronto para fragilizar a saúde de milhões de pessoas.
Dentro deste contexto, o presente ensaio discute como as organizações criminosas na América do Sul se reconfiguraram diante do cenário pandêmico vivenciado desde finais de 2019. Em particular, examina-se no artigo como as práticas e ações conduzidas pelo crime foram levadas adiante na pandemia, mantendo ou até mesmo dando mais força à influência do crime na vida da sociedade sul-americana. Para nossa análise, examinamos três elementos desta atuação das organizações criminosas: 1) adoção de medidas de proteção e restrição de movimento; 2) provisão de assistência humanitária e alimentar; 3) expansão das organizações criminosas no contexto pandêmico.
Como método, adotou-se a triangulação de dados. Foram examinados artigos científicos publicados sobre temática entre 2020 e maio de 2022, dados disponibilizados pela base InSight Crime e experiências colhidas em pesquisas pessoais do autor. Como principal contribuição, argumenta-se que para compreender a governança criminal é fundamental considerar a discussão de como os territórios em que estas organizações atuam não são conflitantes com o Estado. Na realidade, há uma governança híbrida em que coexistem as organizações criminosas e o estado como fontes de legitimidade. Consequentemente, nota-se uma complementaridade de ações, na qual se viu durante a pandemia as organizações criminosas ocupando funções do Estado para controle social, mas sempre com um objetivo claro de manutenção do status quo de suas atividades ilícitas.
Ao final, nota-se que as organizações criminosas se consolidam como espaço de governança reconhecido como legítimo durante a pandemia, complementando e, talvez até, eclipsando o papel da burocracia estatal diante da gravidade da emergência sanitária vivenciada.
O ensaio está dividido em quatro partes. Logo após esta introdução, discute-se de maneira mais detida o conceito de governança criminal e governança híbrida, ideias centrais para entender o papel do organizações criminosas na vida social de muitos países da América latina. Em seguida, apresentamos os dados sobre a inserção e governança do crime no contexto da pandemia considerando três elementos conforme mencionado acima. Ao final, concluímos com os possíveis desdobramentos que a pandemia traz para a problemática do organizações criminosas.
Conceitualizando os conceitos de governança criminal e híbrida
Ainda que a terminologia “organizações criminosas” guarde importantes inconsistências, como problematizado com propriedade pelas pesquisadoras Jaqueline Muniz e Camila Nunes Dias ao defender o termo “domínio armado” (Muniz e Dias, 2022), entende-se aqui que esta última terminologia pode igualmente ser interpretado de diferentes maneiras frente ao objetivo do ensaio. Este domínio pode ser aplicado tanto ao Estado como ente armado legalmente instituído dentro de um dado contrato social, como pode ser também aplicado para grupos que agem à margem dos regramentos deste mesmo Estado. Assim, mesmo reconhecendo a dificuldade de uma definição clara e única para grupos armados que agem fora da lei dentro de um dado Estado, este ensaio usa o termo organizações criminosas, mas consciente de suas limitações conceituais.
Em concordância com Hauck e Peterke (2010), ao adotar esta definição não significa que ignoremos que “interesses políticos e institucionais específicos estão na base das diversas iniciativas de combate ao que se considera ‘crime organizado’”, mas igualmente, “não pode haver dúvidas sobre a existência de fenômenos de criminalidade coletiva que podem ter efeitos devastadores sobre o Estado e a sociedade” que impedem “o funcionamento do estado de direito, o desenvolvimento sustentável e, em particular, a segurança humana” (Hauck e Peterke, 2010, p.411).
Adota-se aqui como parâmetro a definição proposta pela Organização das Nações Unidas. Para a entidade, “grupo criminoso organizado” seria um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existindo por um período de tempo e atuando em conjunto com o objetivo de cometer um ou mais crimes graves para obter direta ou indiretamente benefícios materiais ou financeiros (ONU, 2000). Por sua vez, entende-se por “crime grave” uma conduta que possa levar à punição de privação de liberdade de quatro anos ou mais (ONU, 2000). No caso da América do Sul, destacam-se nesta categoria tanto as organizações criminosas voltadas ao mercado ilícito de drogas, como também aquelas definidas na literatura recente como milícias2 (Nobre e Ferreira, 2021; Pimenta, et.al. 2021).
As organizações criminosas podem ser destacadas como importantes atores não-estatais violentos (ANEVs) (ou grupos não-estatais armados) que operacionalizam dinâmicas híbridas de governança em determinados territórios (Ezrow, 2017; Ferreira, 2019; Pimenta et.al., 2021). Por governança entendemos aqui “qualquer coletividade, privada ou pública, que emprega mecanismos informais e formais de direção para fazer demandas, traçar metas, emitir diretrizes, buscar políticas e gerar conformidade” (Rosenau, 2004, p. 32). Além disso, por governança também se compreende uma estratégia de coordenação causal, envolvendo mecanismos formais e informais para gerenciar um problema ou questão específica (Villa, Braga e Ferreira, 2021).
Com relação aos ANEVs, estes emergem como agentes livres de soberania sem o objetivo de mudar a estrutura política do Estado-nação em que operam (Rosenau, 1990). Em vez disso, eles podem construir um novo tipo de “soberania social”, capaz de estruturar “práticas e agência em uma determinada área da vida social” (Latham, 2000, p. 3). Esse tipo de soberania mina a autoridade tradicional dos Estados sobre seu povo e proporciona modos particulares de governança profundamente arraigados, mas informais, em um determinado espaço social3 (Lilyblad, 2014; Villa, Braga e Ferreira, 2021; Zizumbo-Colunga, 2019). Este é o caso de diversas organizações criminosas operantes na América do Sul.
Há uma literatura emergente sobre como ANEVs fornecem governança onde há falta de controle estatal ou quando ele é contestado (Villa, Braga e Ferreira 2021; Podder, 2017; Schubert, 2016). Nestas localidades, frequentemente existe um sistema híbrido de governança que pode ser entendido em duas dimensões. Por um lado, a chamada governança horizontal (por meio de regras, normas e práticas informais) concentra-se nas relações sociais estabelecidas entre uma multiplicidade de atores e indivíduos não estatais, que podem variar de organizações internacionais a organizações criminosas e grupos armados.
A governança horizontal de entidades criminosas – muitas vezes denominada governança criminal (Lessing, 2020; Ferreira e Richmond, 2021) – surge nos espaços sociais ao criar formas informais de autoridade e legitimidade. Por outro lado, a governança vertical está relacionada às regras formais, normas e práticas institucionalizadas que representam a interação de atores estatais, não estatais e indivíduos nos níveis local, nacional, regional e global (Villa, Braga e Ferreira, 2021; Rosenau, 2004, Boege et.al., 2008).
Embora a governança formal liderada pelo Estado e organizações internacionais sejam frequentemente o foco principal na maioria dos estudos em Relações Internacionais sobre governança (Rosenau, 1990; Rosenau, 2004; Hänggi, 2005), também é fundamental entender dinâmicas menos formalizadas e em rede consolidadas em ambientes onde as organizações criminosas operam. Neste debate, Clunan e Trinkunas (2010) cunham a ideia de “espaços não governados”, que na verdade são governados até certo ponto por atores não-estatais, mas na qual o Estado se mostra ausente ou perversamente negligente (ver Pearce 2010). Como apontado com perspicácia por Victória Santos (2021), vale ressaltar que estes “espaços desgovernados” – termo que a pesquisadora utiliza – são eventualmente instrumentalizados pelo Estado para reprimir empobrecidas parcelas da população através de políticas militaristas.
Por sua vez, Schlichte e Schneckener (2015), bem como Podder (2017), descrevem como os grupos armados não-estatais podem produzir formas mínimas de legitimidade, como foi o caso da construção histórica do Estado moderno (Tilly, 1985) e da própria democracia (Olson, 1993). Neste debate, entende-se que as organizações criminosas também são capazes de criar ordens legítimas compartilhadas com a autoridade estatal, fazendo com que a governança “não seja mais domínio exclusivo de estados ou governos” (Williams, 2008, p.6).
Nesse sentido, é ilustrativo o caso do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo. Esta organização criminosa com forte atuação em vários estados do Brasil (e também no Paraguai, Bolívia e Colômbia), tem sido capaz de gerar espaços complexos de governança própria em bairros periféricos e presídios onde dominam o tráfico de drogas, estabelecem estatutos de convivência entre o crime e a sociedade, e até mesmo cria modelos de justiça paralela com os chamados “tribunais do crime” (ver Willis 2015; Manso e Dias 2018; Richmond e Ferreira, 2021; Ferreira e Gonçalves, 2022). Caso similares podem ser testemunhados na América do Sul, como na atuação do Clan del Golfo e Los Urabeños na Colômbia, Família do Norte (FDN) e Comando Vermelho (CV) no Brasil, e Los Lobos e R7 no Equador.
Willis (2015) demonstra que organizações criminosas estruturadas operam esquemas de governança de baixo para cima. Ele descreve que a governança de organizações criminosas como o PCC – e seus homólogos, como o CV e FDN (Ferreira e Framento, 2019) – acabam por fornecer
uma visão muito necessária sobre as formas de segurança e governança que não são assumidas pelas instituições formais de justiça e legalidade do estado. Nesses locais, antes caracterizados pela ausência de autoridade central, o PCC representa um canal de autoridade hoje mais ou menos incontestável. Segurança relativa, noções de solidariedade e estruturas de assistência social são pilares dessa autoridade(...). A polícia, sempre vista como não confiável, irresponsável, violenta e/ou corrupta, foi substituída por uma ordem social completa com suas próprias normas, noções de justiça e modos de punição (Willis, 2015, p.57).
Logo, torna-se importante indagar como as organizações criminosas podem coexistir com autoridade do Estado quando são capazes de combinar formas horizontais e informais de governança em desafio às estruturas tradicionais de autoridade. Pode-se dizer que tais entidades exercem autoridade quando se engajam na governança horizontal sobre os espaços sociais fornecendo normas que estruturam a experiência dos cidadãos no lugar da presença formal do Estado (Arjona, 2016; Villa, Braga e Ferreira, 2021).
Modos informais de governança emergem em territórios de estado limitado, e operam ‘fora’ do controle de um governo, mas podem alcançar uma medida de legitimidade entre as populações locais e o próprio Estado. De acordo com a estrutura analítica proposta por Lilyblad (2020), os grupos criminosos constroem uma “ordem social ilícita” completa quando consolidam o domínio em três áreas principais: controle territorial, competição por autoridade e capacidade de estabelecer novas instituições, incluindo normas e regras que determinam o que constitui “a lei” dentro de um determinado espaço.
Considerando este contexto, para os propósitos deste estudo, governança híbrida refere-se à autoridade e controle compartilhados entre o Estado e a governança criminal em uma mesma área geográfica. Como definem Pimenta, Suarez e Ferreira (2021, online), em outras palavras,
a governança híbrida é a presença de diferentes fontes de autoridade em um mesmo espaço, onde a violência, as regras e a conduta moral são geridas por atores legais e ilegais. O nível de análise mais adequado para esse fenômeno é o local, como bairros e bairros marginalizados, urbanos ou rurais, que podem se sobrepor nacionalmente, regionalmente ou mesmo transnacionalmente.
Em geral, na América Latina encontramos dois espaços sociais em que coexistem fortemente a legitimidade do Estado e do crime: nas prisões e em bairros periféricos considerados estratégicos para condução de negócios ilícitos. Uma coexistência de formas de governança formais (verticais/estatais) e informais (horizontais/criminosas), misturando atores estatais e não estatais, governam essas áreas.
Nesses espaços socialmente delimitados, organizações criminosas podem competir para realizar seus negócios ilícitos e logo compartilhar a governança com o Estado, proporcionando, se necessário, serviços públicos, como serviço de higiene básica, segurança e resolução de conflitos, TV a cabo e coleta de lixo (Lessing, 2020). Salienta-se aqui que não necessariamente a governança criminal pretende substituir o Estado. Na realidade, elas visam o controle social para desenvolver seu modelo de negócios, coexistindo com um Estado negligente em sua tarefa elementar – sob a ótica da ciência política clássica – de garantir o monopólio do uso legítimo da violência.
Em um cenário caracterizado pela interação entre uma multiplicidade de formas de governança, o hibridismo tende a emergir. Conforme definido por Villa, Braga e Ferreira (2021, online), temos aqui:
modos fluidos de interação formal e informal entre atores estatais e não estatais na interseção das dimensões horizontal e vertical da governança. Na dimensão horizontal, observamos como atores não estatais fazem uso instrumental de práticas de violência e coerção para estabelecer e manter práticas rotineiras de interação social em um determinado espaço social.
Essa abordagem é inovadora em comparação com outras análises sobre as estratégias empregadas por organizações criminosas. Além da dimensão horizontalizada da governança criminal acima mencionada, na dimensão vertical da governança híbrida observamos o Estado exercendo sua autoridade formal sobre espaços e populações, mas com uma dinâmica sobreposta. Aqui, “atores estatais e não estatais se comportam de acordo com o outro, constrangendo ou calculando suas ações considerando os interesses as respostas um do outro” (Villa, Braga e Ferreira 2021, online). Além disso, “em tal ambiente [de governança híbrida], o ‘Estado’ não tem uma posição privilegiada como quadro político que proporciona segurança, bem-estar e representação; tem que compartilhar autoridade, legitimidade e capacidade com outras estruturas” (Boege et.al. 2008, p.10; ver também Tilly, 1985).
Esta convergência pode ser exemplificada nas negociações periódicas entre o Estado e organizações criminosas para manter a paz, como quando o governador do Estado de São Paulo negociou com a liderança do PCC para impedir os ataques implacáveis do grupo às forças de segurança em maio de 2006, ou mesmo quando oficiais negociaram para interromper uma onda de violência nos presídios de Manaus em janeiro de 2019 (Ferreira e Framento 2019; Manso e Dias 2018).
A taxonomia criada por Benjamin Lessing (2020: 14) auxilia na compreensão dos diversos tipos de nexos entre Estado e organizações criminosas. Ele traz quatro possibilidades, sendo a primeira o que ele chama de integração, na qual as organizações criminosas penetram no Estado e podem utilizar seus recursos para seus próprios fins criminosos. Um exemplo neste sentido pode ser exemplificado na integração entre forças do Estado e grupos paramilitares na Colômbia dos anos 2000, ou mesmo na forte interligação entre forças de segurança e grupos milicianos no Rio de Janeiro, especialmente desde 2007.
A segunda possibilidade é a proteção estatal, em que os principais benefícios são as rendas ilícitas provenientes de negócios ilícitos, tal como visto na histórica conivência do Estado brasileiro com o jogo do bicho. Terceiro temos a parceria, na qual o Estado conta com “força coercitiva das organizações criminosas para neutralizar ameaças de terceiros”, beneficiando a construção do estado em si, como bem visto na construção dos Estados europeus ao longo de sua história (Tilly, 1985). No entanto, para Lessing (2020), um conceito mais adequado seria a quarta tipologia, a simbiose, em que Estado e organizações criminosas compartilham benefícios mútuos e dependência. Como ele resume,
A simbiose assim definida engloba ações e políticas estatais que inadvertidamente fortalecem as organizações criminosas e alimentam a governança criminal em particular. É claro que a repressão estatal gera diretamente alguns dos incentivos para a governança criminal (...). Além disso, medidas anticrime e de encarceramento em massa podem fornecer recursos para a governança de organizações criminosas, incluindo oportunidades de recrutamento e networking, incentivos para ação coletiva e até poder coercitivo sobre os governados (Lessing 2020, p.15).
Em todos os casos, a legitimidade é ocasionalmente contestada e produzida dentro de formações de governança híbrida. Enquanto a legitimidade estatal top-down é fundamentada na autoridade racional-burocrática, a legitimidade criminal bottom-up é fluida, até personalista em alguns casos – como visto no Comando Vermelho ou nas personalidades narcotraficantes na história recente do México e Colômbia –, mas pode também ser enquadrada em alguns casos como racional-burocrática no caso de organizações altamente complexas e estruturadas, como se nota no caso do Primeiro Comando da Capital (ver Lessing, 2020, p. 9-11; Ferreira e Gonçalves, 2022).
Assim, em um cenário em que as organizações criminosas dispõem de meios significativos de violência e a autoridade do Estado é prejudicada tanto em seu poder coercitivo quanto em sua legitimidade social, surge uma espécie de governança híbrida. Eventualmente esta governança híbrida compartilhada com o Estado pode desencadear episódios de violência quando os objetivos de ambos atores são diametralmente díspares – como foi o caso do PCC em São Paulo na década de 2010 (Feltran, 2018; Manso e Dias, 2018).
Contudo, em última análise, esta simbiose entre Estado e organizações criminosas tem sido uma constante na América do Sul, refletindo-se também no combate à pandemia do coronavírus. Pode-se dizer até que em alguns casos, como veremos a seguir, as organizações criminosas conseguiram ser mais efetivas no combate à pandemia do que o próprio Estado, tal como bem demonstrado pelas reflexões de Iazetta (2020).
Simbiose entre Estado e organizações criminosas no combate à COVID-19
A atuação das organizações criminosas no combate à pandemia pode ser compreendida dentro desta dinâmica de governança híbrida que se reflete em bairros periféricos e prisões em toda a América do Sul, em que tais organizações desfrutam de certa legitimidade frente à sociedade. O que se viu na maior parte das vezes foi o crime atuando como fonte de autoridade complementar ao Estado. Na análise que se segue, examina-se três aspectos da atuação das organizações criminosas na pandemia: 1) reforço das medidas de proteção sanitária e restrição de movimento; 2) reforço das medidas de assistência humanitária e alimentar e; 3) expansão para conduzir atividades ilícitas sem a repressão de agentes do Estado diante do contexto de alta restrição e mobilidade. Nas subseções que se seguem, exploramos cada um destes três aspectos.
Medidas de Proteção Sanitária e Restrição de Movimento
Uma das formas mais atuantes das organizações criminosas durante a pandemia foi na execução de medidas sanitárias que, na teoria, deveriam ser conduzidas pelo Estado. Em particular, nota-se que que as entidades criminosas adotaram medidas de restrição ao movimento de pessoas e de prevenção sanitária para evitar o espalhamento da pandemia de coronavírus em diferentes países da América Latina.
Não é de se surpreender que as organizações criminosas adotaram mais medidas de restrição justamente nos dois países que mais foram reticentes em reconhecer a gravidade da pandemia, a saber, México e Brasil. Em ambos países, embora os presidentes estivessem em diferentes espectros políticos, o que se viu foi uma negligência clara com as medidas protetivas e com a preparação para uma piora do quadro pandêmico. Um triste exemplo foi que ambos países vivenciaram falta de oxigênio nos hospitais que geraram inúmeras vítimas, além de se destacarem mundialmente pela alta taxa de mortalidade pela COVID-19.
Em particular no Brasil, mesmo em competição pelo controle de territórios na cidade do Rio de Janeiro, tanto grupos milicianos como grupos traficantes de drogas comunicaram duramente a necessidade de medidas protetivas que alcançaram a esfera de controle econômico. Como reportado por Leitão e Martins (2020), estes grupos impuseram o congelamento de preços de álcool em gel nas comunidades que dividem o controle com o Estado, inclusive ameaçando os proprietários de farmácias e mercados que vendiam o produto.
Este controle mercadológico de produtos para proteção sanitária extrapolou as ordens de controle de preços e ameaças, e também passaram a ser contrabandeados por grupos criminosos em vários países da região. Reportaram-se roubos de insumos médicos (como máscaras, álcool em gel, testes rápidos e medicamentos) por organizações criminosas no Brasil, Peru e Colômbia (Navarrete, 2020).
Na esfera cultural, os famosos bailes de música funk que movem a juventude do Rio de Janeiro foram terminantemente proibidos por organizações criminosas (Leitão e Martins, 2020). Nas redes sociais, líderes do Comando Vermelho expressaram que “não haverá nenhum tipo de evento na nossa comunidade para evitar a disseminação do vírus e proteger a todos” (Diário do Litoral, 2021).
Isto esteve claramente alinhado com as políticas recomendadas pelos profissionais de saúde que demandavam evitar aglomerações para evitar o espalhamento do vírus. Curiosamente, no caso do Brasil o governo federal se colocava contra estas medidas através de reiterados posicionamentos negacionistas de lideranças no nível federal. Isto nos mostra como o hibridismo da governança vertical e horizontal se complementam e, neste caso, trouxeram como benefício a proteção da população – embora, vale salientar, as organizações criminosas estejam sempre majoritariamente preocupadas com os benefícios econômicos para os mercados ilícitos que controla (Câncio, 2020; Ferreira, 2017).
A divulgação de restrições de mobilidade por parte de grupos criminosos utilizou como principal ferramenta de divulgação as redes sociais como Facebook, WhatsApp e Instagram. Uma das mensagens, compartilhadas amplamente nas redes em maio de 2020, apresenta-se abaixo na Figura 1.
Figura 1: Mensagem circulada em redes sociais no Brasil, possível autoria do Comando Vermelho
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
Nesta figura, alguns elementos chamam a atenção. Além de mencionar o uso obrigatório de máscaras em bairros do Rio de Janeiro, também cita outras regras, como a saída de casa apenas para a compra de itens básicos. Outro ponto que se destaca é o tom de ameaça: “quem for pego descumprindo ordens, irá aprender a respeitar o próximo”. Ou seja, medidas violentas eram previstas para aqueles que se dispusessem a violar a governança criminal, impondo um domínio que nem mesmo o Estado parecia controlar. Ainda, foram reportadas restrições para que turistas circulassem em áreas sob governança do crime, algo virtualmente ausente nos decretos federais brasileiros (Asmann, 2020).
Esta adoção de medidas protetivas por organizações criminosas também ocorreu na Colômbia. Alda Mejías (2020) compartilha em seu artigo uma serie de imagens similares à que é apresentada acima. Para ela, “en Colombia todas las organizaciones guerrilleras y criminales, implicadas en actividades de tráficos ilícitos, han mostrado esa preocupación y han recurrido a todos los medios posibles de comunicación para transmitir el mismo mensaje”. Esta postura seria visto tanto por parte do Ejercito de Libertación Nacional (ELN), como também pelas Guerrillas Unidas del Pacífico (Mejías, 2020).
Em uma pesquisa mais extensa, o InSight Crime reportou que 11 departamentos no país estiveram sob medidas protetivas de organizações criminosas, que não hesitaram em usar a violência contra quem desobedecesse às ordens expressas (InSight Crime, 2020). Segundo a ONG Human Rights Watch, foram documentados
nove assassinatos em três estados ligados a medidas de grupos armados para impedir a propagação do Covid-19. Oito civis parecem ter sido mortos porque não cumpriram as medidas. A outra vítima era um líder comunitário que parece ter sido morto por se opor às medidas. Dez pessoas ficaram feridas em alguns desses incidentes, bem como em um em Nariño (Human Rights Watch, 2020).
Por fim, é interessante notar como as organizações criminosas se veem em complementaridade ao Estado, manifestando a governança híbrida que anteriormente conceitualizamos. Câncio (2020) reporta um episódio em que na Cidade de Deus, controlada então pelo Comando Vermelho, espalhou-se nas redes sociais uma mensagem emblemática de autoria das lideranças do crime local: “Queremos o melhor para a população. Se o governo não tem capacidade de dar um jeito, o crime organizado resolve”. Em outras palavras, se o governo brasileiro estava fazendo vistas grossas para a gravidade da pandemia, a outra fonte de legitimidade e controle social estava tão somente dando “um jeito” e resolvendo o problema da falta de políticas públicas de restrição a aglomerações conforme orientado pelas autoridades sanitárias.
Ao final, o que se deduz é que tais medidas reforçaram a autoridade e legitimidade da governança criminal, ao passo que demonstraram as limitações do poder estatal em um contexto emergencial. Provavelmente, por trás dessas ações dos grupos criminosos estaria a ideia de limitar o número de mortes de potenciais consumidores e colaboradores que são centrais para o bom andamento dos mercados ilícitos que opera.
Assistência humanitária e alimentar
Além dos toques de recolher e medidas de restrição de mobilidade para controle da pandemia, outro ponto que se destaca é o apoio que algumas organizações criminosas dariam à população durante a pandemia. Muitos países da região adotaram políticas de apoio à população, como transferência de pequenas quantidades de dinheiro na Argentina, Brasil, Equador e Peru; pagamento de contas de energia na Bolívia; adiamento da cobrança de impostos no Chile e Colômbia; suporte a pequenos empresários no Uruguai (Insper Conhecimento, 2020).
Mas não foi somente o Estado que brindou apoio social à massa da população que perdeu seus empregos e meios de subsistência durante a pandemia. Eduardo Moncada, especialista em economia política do crime e docente na Universidade Barnard (Estados Unidos), em entrevista à Folha de São Paulo ressaltou que uma das estratégias adotadas pelas organizações criminosas para reforçar sua legitimidade na América Latina como um todo era a de facilitar o acesso a alimentos, remédios e médicos (Albuquerque, 2021). No entanto, ao que parece de evidências colhidas até então, este apoio foi bastante tímido.
São encontradas poucas evidências que as organizações criminosas tenham destinado parte significativa de seus recursos para brindar serviços de assistência social e alimentar. O apoio social que organizações criminosas brindaram foram muito tímidos, com exceção de relatos confiáveis de organizações criminosas mexicanas e sul-africanas (Sampaio, 2021), em geral focadas em fornecer assistência alimentar para a população em áreas onde governam.
No geral, na América do Sul a assistência foi limitada a facilitar o acesso de médicos a áreas controladas, como visto no caso do PCC na favela de Paraisópolis em São Paulo. Naquele local, o que se viu foi a população civil se mobilizando fortemente para adotar medidas de controle e agindo à margem do Estado e das organizações criminosas para apoiar seus vizinhos. Porém, para a entrada de um médico controlado pela própria população, foi necessária a anuência do PCC (Eisenhammer, 2020). Ao final, como já demonstrado pela literatura, no choque entre o Estado e o crime, muitas vezes quem busca pacificar pelo bem da população será a própria sociedade civil (Ferreira e Richmond, 2021). Enquanto o Estado está concentrado em servir a grupos específicos das elites políticas e econômicas na América Latina (Pearce, 2010), o crime organizado está focalizado em maximizar seus ganhos em mercados ilícitos (Ferreira, 2017).
Uma outra política pontual, segundo Leitão e Martins (2020), foi na favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ali os criminosos determinaram que os comerciantes baixassem o preço do botijão de gás, já que a população, sem poder sair de casa, teve queda na renda e necessitaria deste item elementar para poder cozinhar. Não obstante, este foi um caso isolado. O que se viu no Rio de Janeiro foi uma assistência quase inexistente por parte da principal organização criminosa ali, o Comando Vermelho. Em outras palavras na visão de um grupo de pesquisadores sobre o tema,
É notável que tanto a observação participante como a análise dos dados estatísticos sobre a pandemia no munícipio de São Gonçalo e os elementos oferecidos pela pesquisa indicam uma omissão ou uma inação de CVSG [Comando Vermelho – Complexo do Salgueiro] em relação à pandemia de COVID-19 (Rodrigues et.al. 2021).
No caso da Colômbia, a ajuda por parte do crime organizado foi igualmente tímida, ou em alguns casos, até mesmo passiva. A pesquisa conduzida por Blatmann et.al. (2022) em Medellín são um indicativo desta passividade. Os autores citam falas da população local entrevistada em que os chamados combos fizeram quase nada e se ajustaram somente para continuar a condução dos seus negócios ilícitos. Uma exceção parece ser a pequena localidade de La Loma, na qual Gomez (2020) menciona que os grupos criminosos teriam em conjunto fornecido assistência alimentar para a população.
Os casos das limitadas assistências do crime organizado à população durante a pandemia evidenciam um aspecto já apresentado anteriormente em trabalhos anteriores. As organizações criminosas eventualmente fornecem ajuda para a sociedade, mas em última instância, ela se beneficia da desigualdade social para avançar seus negócios ilícitos. Em outras palavras, o crime organizado usa a estrutura de desigualdade que se manifesta como violência estrutural para parte da população, e simultaneamente reproduz essa estrutura violenta (Ferreira, 2017). Logo, não é surpresa notar que a preocupação do crime não é em primeiro lugar aliviar o sofrimento das populações sob seu controle, mas sim conduzir livremente seus negócios e aumentar a lucratividade dos mesmos.
Expansão na condução de atividades ilícitas
A difícil condição da pandemia foi uma novidade para todas as esferas da sociedade. Testemunhou-se, infelizmente, um incremento significativo da violência doméstica contra crianças e mulheres. Adicionalmente, são inúmeros os relatos em várias áreas do conhecimento, seja ela da Saúde ou Humanidades, da expansão dos vícios em drogas legais e ilegais.
Isto teve um impacto direto na expansão do crime organizado. Embora se esperasse inicialmente um recuo da governança criminal (Global Initiative Against Transnational Organized Crime, 2020; Mejías, 2020), o aumento pela demanda de drogas ilícitas impactou diretamente o fenômeno da criminalidade na América do Sul. Em alguns casos, como no Equador, viu-se um crescimento de 30% das apreensões de cocaína. Ao mesmo tempo, nota-se uma aprendizagem rápida das organizações na adaptação ao novo contexto, incrementando de maneira significativa suas vendas através de novos meios digitais como darkweb, redes sociais (Concha, 2021), ou até mesmo melhorando seus serviços de entrega de entorpecentes.
Com a expansão da demanda, não seria uma surpresa ver o aumento da competição por estes mercados. No entanto, como sabemos, competição neste mercado frequentemente significa mais violência e mortes. Além das ameaças e violências testemunhada contra indivíduos que violassem as medidas protetivas (ver Human Rights Watch, 2020; Leitão e Martins, 2020), também foi comum o choque entre organizações criminosas durante os momentos mais críticos da pandemia. Tanto na Colômbia (InSight Crime, 2020), como no Brasil (Lima, 2021), seriam vistos momentos em que algumas entidades se aproveitaram da retração do Estado no campo da segurança pública para atacar grupos rivais e avançarem no controle de territórios e mercado.
No caso brasileiro, isto foi visto de maneira violenta em Manaus (Brasil), onde três grupos criminosos se digladiavam pelo controle das lucrativas rotas de tráfico de drogas do Rio Solimões: Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho e Família do Norte (Ferreira e Framento 2019). O Comando Vermelho fez um toque de recolher que paralisou a cidade de 2 milhões de habitantes por 24 horas, fechando escolas, queimando ônibus e carros e fazendo suspender a vacinação na cidade (Lima, 2021).
Adicionalmente, outra localidade que testemunhou uma expansão da violência foi o estado do Ceará, Brasil. Como mencionado por Berg e Varsori (2020), este local tem vivenciado uma sangrenta luta entre facções criminosas por ser um ponto estratégico para transporte de entorpecentes para a Europa. Logo nos primeiros meses do lockdown, o aumento de homicídios foi significativo, alcançando 312 mortes em 13 dias. Neste caso, as organizações criminosas se aproveitaram de uma greve policial para expandir seus mercados violentamente, gerando vítimas especialmente nos conflitos entre membros ligados aos Guardiões do Estado e PCC.
Na Colômbia não foi diferente. Segundo Daniela Díaz (2021), ali se viu uma luta entre grupos dissidentes das FARC (Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia) após o acordo de paz de 2016 e grupos organizados como Clan del Golfo. Entra aqui uma forte influência de organizações criminosas mexicanas, que passam cada vez mais a compreender e explorar a posição estratégica da Colômbia no mercado internacional de drogas. Consequentemente, não há segundo suas pesquisas alteração na produção de cocaína, tanto ali como no Peru (Díaz 2021).
As organizações criminosas durante a pandemia, diferente de algumas previsões, não foram impactadas em termos de expansão de sua influência e controle social. Na América do Sul o que se viu foi um incremento do que chamamos de governança híbrida, ou seja, a coexistência em um mesmo território da governança horizontalizada das organizações criminosas e a governança vertical exercida pelas instituições estatais.
Por incremento quer se dizer aqui que os dados demonstrados indicam que não houve um desequilíbrio desta balança de poder em favor do Estado. Na realidade, ao que parece ocorreu o caminho contrário. A pandemia foi um demonstrativo que as organizações criminosas são capazes de substituir o Estado quando este é negligente no controle sanitário que beneficie suas populações, como testemunhado no caso brasileiro e na Colômbia. Salienta-se, porém, que estas medidas não devem ser vistas como uma benevolência criminal, mas sim um instrumento para fortalecimento de sua legitimidade social.
Isto foi particularmente visto com a ajuda muito tímida à população em termos de assistência humanitária e alimentar. Nos momentos mais adversos, o que se viu foi a própria sociedade civil se organizando – como no caso da favela de Paraisópolis, em São Paulo, Brasil – ou a população dependendo do Estado para sua assistência como notado na região de uma maneira geral.
Por fim, a pandemia trouxe uma oportunidade de expansão do crime organizado. Testemunhou-se em muitos locais um aumento da violência na competição por mercados ilícitos, assim como um incremento na demanda por drogas ilícitas que só beneficia a governança criminal. Neste contexto, infelizmente se nota um desafio ainda maior para a sociedade civil, que em muitas periferias das cidades da América do Sul navega entre dois sistemas de governança que se complementam, mas que igualmente não os coloca como centro de suas políticas e ações.
Em última instância, as organizações criminosas têm objetivos econômicos, materializados na expansão de mercados considerados ilícitos à luz das leis estatais. Já o Estado, nas zonas periféricas da América do Sul, age com negligência e pouco planejamento para diminuir a desigualdade e violência. Entender essa lógica do capitalismo e pensar maneiras de freá-la passa a ser essencial se queremos testemunhar uma paz social mais presente na América do Sul. E frear a lógica de violência não só do crime, mas também de um Estado perversamente negligente.
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1 Universidade Federal da Paraíba. Departamento de Relaciones Internacionales. Profesor Asociado. Doctor en Ciencia Política. Correo eletrónico: marcosalan@gmail.com
2 Entende-se aqui por grupos milicianos “redes criminosas que atuam em atividades econômicas e de controle territorial de forma ilegal com base no uso de força e coação. São o estágio mais avançado dos grupos de extermínio (...). A nomenclatura foi propagada a partir de discursos midiáticos e políticos como forma de tentar legitimar velhas práticas de execução sumária por grupos informais armados compostos por agentes de segurança do Estado. Também suaviza as reais consequências dessas ações e o real significado das antigas terminologias” (Nobre e Ferreira, 2021, 134).
3 Os espaços sociais são entendidos aqui de acordo com a definição de Pierre Bourdieu: “A estrutura do espaço social se manifesta [...] na forma de oposições espaciais, espaço físico apropriado funcionando como uma metáfora espontânea para a ordem social” (Bourdieu 2018: 106). Além disso, os espaços sociais são territórios limitados definidos pelos grupos que os controlam, de modo que a delimitação entre o território que está dentro e fora desses espaços sociais é fluida e dinâmica.
Fecha de recepción: 12 de julio del 2022 • Fecha de aceptación: 1 de octubre del 2022 • Fecha de publicación: 29 de noviembre del 2022
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