Revista de Teología
Revista de Estudios Sociorreligiosos
Volumen 14, Número 2, 2021
ISSN 2215-227X • EISSN: 2215-2482
Doi: https://doi.org/10.15359/siwo.14-2.1
Recibido: 10/03/2021 • Aprobado: 8/08/2021
URL: https://www.revistas.una.ac.cr/index.php/siwo
Licencia (CC BY-NC 4.0)
Vislumbrando caminhos: elucubrações filosóficas feministas
Entreviendo caminos: ideas filosóficas feministas
Glimpsing paths: feminist philosophical insights
Ivone Gebara1
Resumo
O presente texto tem uma finalidade filosófica pedagógica ante os desafios atuais e a situação pandémica. A autora indica que as respostas predominantes de acusação e pressão do Estado ou de uma grande instituição religiosa para que tenham amorosidade não são as mais efetivas. Parte, então, das vivências e do pensamento da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui no mundo aymara. O caminho das micropolíticas que sugere Rivera propõe outra lógica: minimalista, da vida cotidiana (tempo de gestar vida e transformações), da sobrevivência digna que rompe a lógica capitalista e sobrevive incomodando os donos do mundo. Nesse sentido, a partir de um exercício pedagógico feminista, a autora denuncia uma visão e uma análise simplistas ante as mudanças necessárias, e adverte sobre a urgência de revisão dos limites epistemológicos e éticos como condição para continuar a busca e o caminho comum da humanidade e do planeta.
Palavras-chave: micropolíticas, limites epistemológicos, limites éticos, filosofia feminista, pedagogia feminista
Resumen
El presente texto tiene una finalidad filosófica pedagógica ante los desafíos actuales y la situación pandémica. La autora indica que las respuestas predominantes de acusación y presión del Estado o de una grande institución religiosa para que tengan amorosidad no son las más efectivas. Parte, entonces, de las vivencias y del pensamiento de la socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui en el mundo aymara. El camino de las micropolíticas que sugiere Rivera propone otra lógica: minimalista, de la vida cotidiana (tiempo de gestar vida y cambios), de la sobrevivencia digna que rompe la lógica capitalista y sobrevive incomodando los dueños del mundo. En ese sentido, desde un ejercicio pedagógico feminista, la autora denuncia una visión y un análisis simplistas ante los cambios necesarios, y advierte sobre la urgencia de revisión de los límites epistemológicos y éticos como condición para seguir la búsqueda y el camino común de la humanidad y del planeta.
Palabras clave: micropolíticas, límites epistemológicos, límites éticos, filosofía feminista, pedagogía feminista
Abstract
This text has a pedagogical philosophical purpose in the face of current challenges and the pandemic situation. The author indicates that the predominant responses of accusation and pressure from the State or a large religious institution to be loving are not the most effective. It starts, then, from the experiences and thought of the Bolivian sociologist Silvia Rivera Cusicanqui in the Aymara world. The path of micropolitics suggested by Rivera proposes another logic: minimalist, of everyday life (time to create life and changes), of dignified survival that breaks the capitalist logic and survives by bothering the owners of the world. In this sense, from a feminist pedagogical exercise, the author denounces a simplistic vision and analysis in the face of the necessary changes and warns about the urgency of reviewing the epistemological and ethical limits as a condition to follow the search and the common path of humanity and the planet.
Key words: micropolitics, epistemological limits, ethical limits, feminist philosophy, feminist pedagogy
A socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui tem aberto o pensamento latino-americano para novidades inspiradas em suas vivencias no mundo indígena aymara. A partir dele, nos abre brechas instigantes desde a oficialidade contemporânea, sobre a qual me referirei no meu primeiro capítulo. É nessa oficialidade, entretanto, que continuamos a buscar inspiração para encontrar saídas aos processos sufocantes de destruição do planeta e em consequência da vida humana. É como se mantivéssemos a pretensão de que apenas com nossas análises de esquerda política tradicional e/ou contemporânea pudéssemos destruir o dragão avassalador do capitalismo que nos mantém cativas de seus muitos caprichos e invenções. É como se ainda acreditássemos que só os avanços da ciência e da tecnologia iriam favorecer uma vida mais digna aos pobres e aos menos pobres. É como se ainda acreditássemos poder converter os corações dos capitalistas e de seus teóricos que mantêm o mundo cativo de suas invenções e poderes. É como se ainda acreditássemos que os discursos humanistas e religiosos pudessem impedir a construção de oleodutos, barragens, grilagem de terras, produção de armas e suas consequências sociais cada vez mais mortíferas. É como se ainda acreditássemos que as instituições políticas e religiosas patriarcais cederão espaços igualitários às mulheres e aos grupos minoritários excluídos, sensibilizadas talvez com nossos gritos e nossas manifestações públicas.
A resposta que em geral temos dado frente a todos esses problemas é acusar e pressionar o Estado ou uma grande instituição religiosa para que olhe amorosamente ou com mais justiça para o povo, sem perceber que isto significaria também a morte delas ou sua radical transformação. Se simbolicamente as representássemos como um Dragão vivo onipresente, o Dragão seria o Estado, a instituição política e religiosa oficial. Cederiam talvez a algo de nossos pedidos, mas certamente não acolheriam a maioria de nossas reivindicações visto que atendê-las quase significaria um processo de destruição de seu próprio ser. Por essa razão, um caminho que Silvia Rivera nos sugere é o das micropolíticas que em parte escapariam ao controle da política do Estado.
Es construir espacios por fuera del estado, mantener en ellos un modo de vida alternativo, en acción, sin proyecciones teleológicas ni aspiraciones al “cambio de estructuras. En este sentido es nada más nada menos que una política de subsistencia (...) un ejercicio permanente y solapado de abrir brechas, de agrietar las esferas molares del capital y del estado”.2
Em tempos de pandemia a luta pela sobrevivência coletiva dos mais pobres e por um mínimo de segurança para todos é absolutamente necessária. Esta proposta é aceita sem grandes problemas. Entretanto, é preciso correr riscos de, ao analisar o mundo a partir da oficialidade acadêmica, reconhecer que este olhar se situa majoritariamente na destruição teórica da lógica do Estado capitalista, numa espécie de lógica alternativa dualista. Nessa lógica nem sempre a acusação move o acusado, nem sempre o vitimizador muda seu comportamento, embora por medo da punição finja acolher seu erro. O processo da justiça em teoria política e religiosa é um processo a longo prazo, inseguro, com muitos reveses e pequenas vitórias. Porém, existe outra lógica, uma lógica minimalista, a lógica da sobrevivência digna que fura a lógica capitalista e que sobrevive como se fosse uma pedra nos sapatos dos donos do mundo. É a lógica presente em muitas comunidades indígenas, de negros, de mestiços, de emigrantes, de mulheres organizadas que conseguem fazer a diferença através de suas pequenas conquistas de respeito e ajuda mútua. Vivem o diferente no mesmo sistema, o que parece algo sem grandes resultados teóricos, mas enormes na prática e, sobretudo, como prática pedagógica de mudança real de comportamentos.
Os pobres crescem em número pelo mundo. Suas vozes não se calam. São privados de vida, mas sobrevivem de formas extraordinárias. Genocídios, infanticídios, feminicídios, ecocídios estão na ordem do dia. Mas também pequenos nichos de vida diferente, talvez insignificantes, mas que vão abrindo pequenas brechas nos pesados muros do capitalismo patriarcal e alimentando vidas e pequenas esperanças. Por isso são eles que têm que se misturar às nossas iniciativas intelectuais e inspirar nossas análises e esperanças para não cairmos nas tentações de imaginar mundos perfeitos ou ideais sem nenhuma possibilidade de efetivação de mudanças urgentes. Estes pequenos nichos de cuidado com a vida, absolutamente imprescindíveis, inspiram muitos caminhos em nossa América latina e vão se multiplicando de muitas formas e em muitos lugares.
1. Algumas de nossas vivências contemporâneas
Numa era científica e tecnológica como a nossa parece fácil vislumbrar o futuro do avanço das novas descobertas humanas. Chegamos até a apostar sobre o impossível! Desvendamos conhecimentos outrora desconhecidos. Inventamos instrumentos para medir os bilhões de anos luz desde o nascimento de nossa galáxia. Descobrimos até a menor proporção da matéria. Conseguimos, igualmente, vacinas, remédios, enxertos para nosso corpo e instrumentos de comunicação instantânea para além dos limites do espaço e do tempo. Entretanto, a contradição nos assola e amedronta. Enquanto cresce o alcance das ciências e tecnologias, têm aumentado a pobreza e a fome do mundo, atingindo uma proporção cada vez maior de milhões de pessoas. O desenraizamento de pessoas obrigadas a deixar seus lugares de origem cresce de forma assustadora e revela outro lado de nosso progresso em ciência e tecnologia, o lado obscuro, excludente, mortífero e amargo para muitos. A desproporção em qualidade de vida é assustadora!
O conhecimento humano parece não ter um fim e nem limites apesar dos reais e cotidianos limites que a vida impõe. Uma geração delega à outra a continuidade das descobertas sobre a espécie humana e outras espécies, para que continuemos o processo de conhecimento e dominação que nos caracteriza. Dominação, pois de certa forma conhecer é também dominar, é enquadrar em conceitos e teorias e é, portanto, limitar até certo ponto a posse do conhecimento. E limitar é também ter poder sobre, é dominar, é possuir, é defender sua posse qualquer que seja ela, é talvez torná-la e vendê-la como mercadoria. Nossas ações e pensamentos se interdependem em todas as dimensões.
No entanto, nesse percurso aparentemente sem fim, seguimos lobos ferozes para nós mesmos, incluindo a crescente devastação de nosso planeta. E, sobretudo, seguimos sem novos instrumentos para sondar nosso coração e transformá-lo no mesmo ritmo da ciência e da tecnologia, buscando uma solidariedade real entre nós, buscando ter um coração de carne, como diria o profeta Ezequiel, coração capaz de sentir a dor alheia e buscar um real conforto para todos. Nos encontramos frente a nós mesmos/as como num beco sem saída, pois é lá no coração humano, lugar simbólico privilegiado de nossa consciência e nossa emoção, que muitas barreiras parecem crescer de inimagináveis novas formas e intensidades. É lá, no coração humano, porém, que os progressos avançam pouco.
Nossos pequenos avanços em bondade e justiça, necessários para nossa sobrevivência como espécie, quase sempre levantam nuvens espessas de empecilhos que limitam nossa capacidade de enxergar a nós mesmos/as como coletivo plural em busca de vida. A constatação que fazemos nos leva a afirmar que cada pessoa e cada geração é, de certa forma, um mundo em relação aos outros que constituem o mundo humano mais amplo em contínuo processo de evolução, renovação, recomeço, reaprendizagem das novidades que irrompem, embora sempre acompanhadas do ranço amargo e destrutivo individualista que nos caracteriza por dentro e por fora.
Há algo em nós que nos atravessa e nos surpreende. Emprestando, talvez de forma bem livre, a distinção que o filósofo Edmund Husserl3 (1859–1938) fazia entre o fenômeno, ou seja, aquilo que aparece e o noumenon, ou seja, a diversidade de perfis que contêm um objeto e que dão suporte à consciência e ao fenômeno. Tal distinção nos lembra que a forma como a realidade se apresenta hoje é apenas um perfil ou perfis dessa mesma realidade. Cada pessoa e cada grupo social abraça um deles. Cada perfil é uma expressão a partir de nossa perspectiva, também marcado por nossa intencionalidade no contato com ela. Em outras palavras, a aparição das coisas à nossa consciência e nossa compreensão dela é sempre limitada a partir de nosso lugar e nossa subjetividade, daquilo que buscamos ver e comprovar. E, esse limite deve ser considerado para que não esperemos que a totalidade de perfis, inclusive os imaginários, impossível de ser apreendidos e delimitados, entrem em nosso perfil ou em nossa perspectiva como se fosse ‘a realidade’ total. Em outros termos, quando dizemos ‘isto é a realidade’, há que acrescentar ‘a realidade como eu e alguns a percebemos’. Ou ‘isto é o que as mulheres pensam’ há que perguntar ‘que mulheres?’. Nosso conhecimento é por isso sempre parcial, perspectivista, limitado. Porém, podemos aprender uns dos outros, podemos abrir-nos para outras perspectivas, apreender o que antes não captávamos, trocar apreensões e saberes.
Há uma distinção entre o objeto ou a realidade percebida e a multiplicidade do real que a sustenta, pois há sempre mais do que a nossa percepção. A atual percepção que temos de um objeto só se sustenta ante a possibilidade dos diversos perfis sob os quais esse objeto pode ser apreendido e diferenciado. O objeto físico ou a situação relacional, cultural, econômica, social, política e religiosa tem aparições e aparências diversificadas que podem se mostrar desde diferentes perspectivas e horizontes. E além disso, estão sempre interconectadas ou interdependentes, muito embora nem sempre consideremos estes aspectos. Por isso, ao propor uma reflexão filosófica, estou tentando mostrar a complexidade do real, a multiplicidade de suas aparições, a intencionalidade que temos ao querer conhecê-la e transformá-la. E mais, estou afirmando que minha descrição do real é, portanto, limitada ao meu pequeno mundo assim como o são as análises de políticos e cientistas sociais de diferentes tendências.
É nesse contexto epistemológico, sem dúvida parcial e emocionalmente subjetivo, que esse texto propõe uma breve reflexão com uma finalidade filosófica pedagógica para nos lembrar dos limites de nossas leituras da realidade social e reafirmar a maravilhosa e incômoda colcha de retalhos que é nosso tecido de vida. Sem dúvida, movo-me a partir de meu pequeno retalho de colcha de mulher feminista e idosa, certa de que ele se interliga a todos os outros, os sustenta e se sustenta neles. Marcados pela grandeza e pequenez de quem somos, capazes de construir e destruir mundos, de amar e odiar, de selecionar e dividir, de inventar e amordaçar, somos expressões da matéria vital, da substância da própria vida e, cada um/uma de nós nos propomos a compreender algo desse momento atual de nossas múltiplas vivências.
O retalho que sou se abre aqui a algumas elucubrações de ordem filosófica inspiradas em desafios lançados por nosso tempo marcado por tantos problemas e assolado mundialmente pelo vírus da Covid 19. Este minúsculo vírus que não podemos ver a olho nu, mas que a ciência nos mostra através de potentes microscópios e até em cores, tornou-se uma espécie de barreira comum ameaçadora da vida de todas as pessoas do planeta e símbolo real de sua fragilidade. Tão pequeno e tão grande ao mesmo tempo, ele nos convida a repensar nossa condição e nossas relações nesse planeta que vem sendo modificado por nossa ciência e destruído de diferentes formas pela nossa impressionante capacidade depredativa.
Um vírus planetário, agressor sobretudo dos humanos, nos sugere uma série de reflexões e nos convida a repensarmos a vida humana planetária que temos vivido nestes tempos antropocenos, tempos de quase ‘sem limite’ e ‘sem medida’ em relação à exploração de nossa própria vida no planeta. Tempos em que o mundo, na sua diversidade, vem sendo manipulado e reduzido - apesar da beleza da arte, da ciência, da tecnologia e do amor sempre presente- ao implacável desvario do poder dos humanos. Não estamos mais conversando amorosamente uns com os outros, nem com os mares, rios e as florestas com seus múltiplos habitantes. Estamos impondo a eles nossa maneira excludente de ser e nossa maneira de usá-los como objetos adaptáveis às nossas invenções do momento, como se pudessem caber sempre numa teoria ou num projeto de voracidade econômica e dominação política.
Homens, mulheres e a natureza, com suas vidas múltiplas, estamos nessa aventura iniciada e continuada sem saber bem em que direção ou em que direções vamos caminhando. Por isso, é necessário sempre renovar nossas tentativas de compreender, interpretar e partilhar algo do que estamos compreendendo e vislumbrar alguns possíveis cenários futuros, de forma especial em relação à vida das mulheres, na tentativa de nos ajudar nessa aventura comum única.
2. A questão dos limites e das fronteiras.
As palavras que pronunciamos ajustam seus sentidos às escolhas de sentidos que vivemos. As mesmas palavras transformam-se, revestem-se de sentidos diferentes dependendo de quem as usa, do lugar social que ocupa, do gênero de quem as pronuncia, do tempo e espaço em que são utilizadas.
Hoje, para alguns grupos sociais e políticos, as palavras que tocam a limites e fronteiras ressoam muitas vezes como algo negativo, algo cheirando desrespeito, imposição, controle, falta de direitos e falta de liberdade, embora saibamos que não podemos nos desvencilhar delas. Queremos, talvez, uma sociedade sem limites, sociedade de bens e direitos para todos, de saciedade absoluta, de liberdade, de justiça total, enfim, de felicidade geral e irrestrita. Porém, nem sempre pensamos na exigência de limites necessários aos nossos sonhos e ações, inclusive em vista da exigência de transformar a compreensão dos limites, de modificá-los em todos os setores da atividade e do conhecimento humano. Assim quando dizemos ‘queremos um mundo mais justo’, ‘um mundo melhor’, ‘um mundo sem fronteiras’, ‘queremos ser livres’ o que estamos querendo expressar? Esse vocabulário amplo e genérico nos levaria a que lugares?
De certa forma, a sensação de querer a superação de limites está em nós, no próprio movimento da vida. Historicamente podemos constatá-los em tudo o que vivemos e mais precisamente através de nossa história de relações de dominação, de colonização de uns por outros, de apartheid, de divisão de classes, de exclusão de gêneros, de racismos e de tantas outras situações que marcam em nossas vidas a presença de limites. Construímos muros, prisões, campos de concentração, divisões, diques, muralhas de contenção, as mais variadas dentro e fora de nós. Matamos e morremos como se o planeta fosse apenas nosso e nós, seres eternos no presente sem limites... Porém, os limites não são sempre negativos como muitas vezes imaginamos. São realidades absolutamente necessárias para a manutenção da vida, são necessários para a liberdade e a justiça, são necessários para o amor e o respeito mútuo, são necessários para as lutas feministas e muitas outras.
Hoje, ao querer derrubar muros e propor alguns caminhos de justiça, não nos damos conta da necessidade de estabelecer limites ou novos limites. O rio, o mar, a floresta, nossas casas, nossas plantações, nossos corpos têm limites. Tudo o que existe tem limite para ser o que é, para afirmar-se como expressão da diversidade que somos. Se ultrapassamos alguns limites nos destruímos.
É nesse sentido que há que pensar nos limites que nós seres humanos nos impomos como absolutamente necessários para uma vida em comum. Há que pensar nos limites da liberdade que buscamos e entender que a liberdade exige limites mútuos, recíprocos e responsabilidades comuns. Talvez a questão dos limites seja uma das mais importantes questões filosóficas de nosso tempo e particularmente dos movimentos feministas. E isto porque nós mulheres estamos transformando a compreensão dos limites, as medições de espaços, as ocupações de terrenos sociais, as possibilidades de fala pública, as proibições, as leis e os códigos culturais que nos limitaram. É uma revolução, um revolver a terra de nossa cultura patriarcal de diferentes maneiras. Por isso, há que pensar nos limites de nossas relações humanas, de nossa política, de nossa economia produtiva e distributiva, que são apenas limites de uns sobre os outros. Há que pensar nos limites dos bens que produzimos para saber se tudo pode ser usado por todos/as da mesma forma e, se usado, que consequências adviriam desse uso. Há que pensar no tipo de educação que damos às crianças e jovens.
As mulheres feministas atuando em diversas áreas do conhecimento e trabalho humano têm se enfrentado a essas questões e têm se esmerado em mudar os limites impostos pelo mundo patriarcal e capitalista. O feminismo vai, dessa forma, para além da reivindicação de direitos para as mulheres. Pensa o mundo de relações nas diferentes expressões de nossas vidas e a partir da vida de diferentes grupos. Basta ver como estamos ressignificando a História, o Direito, a Filosofia, a Agricultura, a Música e outras Artes. Estamos movendo seus limites e introduzindo outros. Estamos exigindo, de certa forma, novas fronteiras nesse vasto mundo globalizado.
Vivemos numa ordem social e cultural pré-estabelecida branca e masculina e a partir dela acordarmos para a afirmação de direitos em vista de outro tipo de relações. A maioria de nós, por exemplo, quer a democracia, porém não sabemos bem o que ela é. As definições gerais que temos muitas vezes não nos explicam grande coisa e por isso não nos servem mais. Elas se tornam cada dia mais vazias de sentido porque a enormidade do conceito não permite a delimitação de conteúdos performativos que possam de fato modificar e beneficiar a vida cotidiana. As mudanças que desejamos devem tocar nosso ‘aqui e agora’ e não ser apenas planos de futuro ou ideias bonitas sem nenhuma eficácia.
O fato é que a partir da educação política de sentimentos ególatras vigente entre nós, simbolicamente o primeiro rei ou a primeira rainha sempre sou eu. Isto torna difícil que todos participem e tenham acesso a todo o necessário como reza a limitada cartilha democrática que introjetamos através do capitalismo ‘democrático’. Não é possível ter e consumir tudo o que se produz e da forma como se produz, não é possível que todos tenham acesso a moradia enquanto alguns têm 50 mansões e vastas extensões de terra.
O capitalismo democrático excita em todos/as a vontade de ter sempre mais, excita a paixão pelo ego e por suas posses, mesmo que de forma destrutiva e, chama esse desenfreamento consumista de democracia. Democracia, governo do povo, poder do povo, bem para o povo! Mas qual é esse poder, quem é esse povo, o que é esse bem e essa forma de governo? Quem a propõe, ou impõe ou dispõe? E nós mulheres somos que parte desse povo?
O capitalismo atual necessita do discurso amplo e ao mesmo tempo vazio para manter a necessária contradição da supremacia econômica de uma minoria sobre uma maioria, para excitar na maioria o desejo de alcançar os estilos de vida e os benefícios da minoria.
Os ultrajantes privilégios de minorias são usados até como iscas para atiçar os desejos das maiorias, para avivar nelas o sonho da possibilidade de mudança de vida ainda que com menores benefícios. A partir dessa lógica hierárquica, excludente, emocional e efetiva as minorias dominadoras mantêm seus limites de preservação, seus privilégios e mantêm as maiorias cativas de seus projetos. Por isso há que pensar na importância de nossas razões e emoções subjetivas, na construção de nossas relações e dos limites que construímos uns para os outros/as. Há que pensar concretamente nas possibilidades oferecidas por nosso pensamento e nas necessidades reais de nossos corpos. É nessa linha que o feminismo recupera os corpos. Não quer recuperá-los para o Mercado consumista, para o espiritualismo religioso, mas em primeiro lugar para si mesmo, para que cada corpo em relação com os outros corpos possa viver com dignidade. Daí as necessária perguntas: qual é o mundo como lugar benéfico de convivência humana que gostaríamos de construir juntas/os? Qual é nossa responsabilidade e qual é a responsabilidade dos homens na construção dessas novas relações?
O mundo hierárquico patriarcal presente nas filosofias ocidentais não só criou uma divisão entre o corpo e a alma, mas criou uma separação entre o mundo das mulheres e o mundo dos homens. Sem dúvida, não é uma divisão e uma separação estanques, porém uma divisão hierárquica e de submissão nas relações entre o feminino e o masculino, submissão da matéria ao espírito como uma ordem do universo, da natureza e do Deus patriarcal. O mundo dos homens ainda repousa simbolicamente na figura do espírito ou da alma imaterial, sobretudo na linha de um ‘dever ser’ pré-estabelecido. O mundo das mulheres se situa mais na categoria corpo, subsistência, substância, matéria em transformação, força reprodutiva e, sem dúvida, considerado inferior em qualidade de ser. Por incrível que possa ser esta afirmação, nosso mundo humano da atualidade continua a se caracterizar pela dominação do espírito, do pensamento, do conhecimento científico e técnico como a última palavra sobre o planeta e seus habitantes. E a tal ponto isso é verdade que, proporcionalmente, bem poucos homens aderem às causas das mulheres, poucos engrossam as lutas por reivindicação por respeito aos corpos femininos, poucos assumem publicamente sua responsabilidade na violência cometida e mantida. Assistem a suas manifestações, talvez alguns até concordem, porém não levantam a voz, não se tornam sujeitos ativos em vista de outras relações humanas, de outras formas de educar a masculinidade vigente. E, além disso, a dominação masculina é mantida e legitimada por uma ideia sublime de um Deus todo poderoso, imaterial e oculto que desde o céu dirige os destinos da Terra através dos representantes masculinos. Desde Sua imaterialidade ouve os gritos das mulheres, mas continua mantendo os homens no poder que lhes entregou. Segue assim a forte dominação do masculino abrindo apenas pequenas conceções dentro do mesmo sistema, driblando as reações e iniciativas das mulheres contra suas contínuas formas de opressão, mesmo as mais sutis e aparentemente inocentes.
Foi o pensamento que criou as hierarquias, foi o pensamento que inventou as raças puras, a orientação sexual correta, a família perfeita; foi o pensamento que inventou o Mercado dominando as relações humanas e a apropriação da natureza como objeto de dominação humana. Foi o pensamento masculino que criou leis proibitivas para as mulheres e as crianças, foi ele que inventou a escravidão e as prisões de todos os tipos para sanar as infrações às suas ordens. O feminino, o corpóreo, concedeu e acolheu essa força e esse privilégio do pensamento, embora dúvidas sobre sua supremacia sempre tivessem existido. Assim, o mundo capitalista plantou estacas e tendas protetivas para que apenas minorias reinassem e criou ilusões de acessibilidade ao seu mundo. Criou suas divindades masculinas, reforçou a interpretação hierárquica de seus livros sagrados e nos fez acreditar que Deus, desde os céus, segue governando a terra e controlando a vida das mulheres a partir desse mesmo sistema colonialista, capitalista, racista, misógino no qual vivemos.
A pergunta que muitas de nós mulheres hoje fazemos é se de fato queremos ter a acessibilidade total ao mundo das minorias capitalistas ou se, na realidade, estamos buscando a transformação desse mundo, sua mutação em outra figura que ainda não sabemos bem como será. Essa nova figura que se desenha cada dia através de pequenos traços nem sempre visíveis vai nutrindo rotas comuns que podem ser mudadas, reprogramadas, na medida em que perdemos o ponto de chegada fixo e abrimo-nos para o limite que estabelecemos para o dia de caminho de hoje. Às vezes torna-se necessário voltar atrás, refazer a rota, captar melhor os obstáculos e novamente seguir corrigindo caminhos para o rumo que parece ser o melhor. É nessa perspectiva que o feminismo fala da vida cotidiana, não apenas como repetição e monotonia, mas como o tempo em que se gestam vidas e mudanças. O cotidiano é corpo que planta, colhe, come, bebe, se abriga, chora, abraça, celebra, deseja e morre. A vida real se passa no hoje, embora dividamos nossos tempos, nossas etapas, nossas rotas, nossos planos. E é a partir do hoje de nossos corpos que o rumo ou a direção têm que ser estabelecidos de forma mais ou menos precisa, embora os imprevistos estejam sempre presentes. É hoje que não posso calar quando uma mulher é violada. É hoje que me alegro quando um grupo de camponesas conseguiu terra para plantar, é hoje que me alegro quando vizinhas reconstruíram a casa de outra vizinha, é hoje que me alegro com o jardim de infância improvisado que se organizou no bairro. É muito pouco mas é algo!
Nessa quotidianidade que nos caracteriza há, sem dúvida, limites importantes que devem ser respeitados. Os limites aos quais me refiro agora não são necessariamente os geográficos, os temporais, mas os limites éticos. O que seriam para nós mulheres, e talvez também para muitos homens, os limites éticos?
A palavra ética tem a ver com um ethos, com hábitos, costumes, normas, valores, com uma maneira social e pessoal de viver que permita uma vida digna para os habitantes do planeta. Implica em acolhida de valores que precisam estar presentes no cotidiano da vida, nas múltiplas formas de relacionamento humano, para que possamos conviver com equidade entre nós e com o planeta. É aí que a necessidade de limites éticos se impõe como teoria e prática misturadas ao cotidiano da vida.
Limite significa delimitação, fronteiras, respeito às bordas, às praias, às margens, aos precipícios, aos tempos, à regras estabelecidas, às necessidades de nossos corpos para que não se chegue aos extremos capazes de produzir a morte em vida. Limites significa acabar com excessos, acabar com as loucuras de algumas paixões, de algumas predefinições impostas, significa finalmente impor em nome do bem, algumas formas de controle de nosso desejo. E isto para que ninguém tenha o direito reconhecido de viver melhor do que os outros, ou seja, de comer, de beber, de vestir, de morar, de estudar e de se divertir enquanto à maioria tudo é negado. Há um limite, um basta para a negação de direitos, para a irracionalidade dos que se julgam nascidos com direito, direitos de berço nobre, direitos de normalidade, direitos de posse.
O excesso de direitos tornados privilegio de alguns é sinal de morte para a maioria dos outros/outras. Nós mulheres, por nossa situação, estamos percebendo a ausência de limites em muitos comportamentos sociais relacionados aos nossos e a outros corpos. Por isso, há que estabelecer limites e respeitar limites para que os novos limites éticos penetrem nas relações humanas. Mas como se fará isso?
Ao afirmar a necessidade real de limites nos damos conta de que o convite à transformação pessoal e social é enorme e, ao mesmo tempo, é dificílima por conta de nossos hábitos culturais patriarcais e colonialistas, por conta do capitalismo e seus atrativos, e da submissão cultural e religiosa naturalizadas. Ao mesmo tempo, porém, não queremos que ninguém possua uma fonte de água mineral e usufrua dela enquanto outros bebem água salobra dividida com animais. Todas/os sabemos o quanto isso é comum no mundo ocidental e, em especial, na América latina. Mas, no fundo poucos renunciamos à fonte de água mineral que está em meu terreno, não renunciamos as muitas casas que possuímos, as terras imensas que minha família possui, aos bens que guardo como reserva bancária, aos bens que guardo para meus filhos, netos e talvez bisnetos. Embora querendo justiça social, nossa ética se acaba ou simplesmente vira uma ética formal de princípios e apenas do ‘dever ser’. Um dever ser dificilmente se transforma em um é porque não queremos renunciar ao que temos, a nossos pequenos ou grandes privilégios. Quem nos despossuirá para tornar nossas posses coletivas? Velha questão que volta sempre nos momentos de crise e penúria! Velha questão que toca também os feminismos e as muitas lutas das mulheres! E mais uma vez a pergunta, como se dará a mudança em favor da vida?
Muitas revoluções tentaram isso, inclusive na América latina, mas não conseguiram efetivamente manter seus sonhos de partilha e socialização de bens e saberes, num mundo rodeado de magnatas e de arautos e defensores ferrenhos da propriedade privada latifundiária. Mesmo com o uso da força, muitas vezes as paixões humanas de posse e defesa de seus interesses é que prevaleceu. A defesa de si e o medo de perder uma digna ou privilegiada sobrevivência limitou e limita os avanços revolucionários, a ação solidária de igrejas e inclusive os movimentos feministas. O máximo que se pôde fazer foi partilhar alguns bens individuais ou deixá-los em herança para instituições sociais de benevolência. O mundo capitalista nos educa para valores individualistas, para a competição, para a previsão para que amanhã não nos falte o que já conquistamos hoje. O Cristianismo, salvo raras exceções, entrou nessa mesma lógica individual e individualista, embora fale de comunidades eclesiais, de partilha de bens, de justiça no trabalho e nas relações sociais. Seria ainda possível tentar viver de outra maneira? Seria possível impor limites éticos aos nossos desejos e aos medos de uns e outros?
As éticas na sua semelhança e diferença têm a ver com usos e costumes, com responsabilidades, com direitos, com partilhas de diferentes tipos. Entram na política, na economia, na educação, na religião, enfim, na vida pública e na vida privada dos cidadãos/ãs. E os direitos à vida exigem limites e são os novos limites que nós mulheres estamos buscando. Estamos buscando limites à propriedade de nossos corpos e ao corpo da Terra, limites ao consumo exagerado, limites à destruição, limites ao desperdício e muitos outros limites. Estamos querendo desentulhar o mundo de posses vãs, de preconceitos, de ódios acumulados, dos homens truculentos que nos violentam e matam, que nos desqualificam e silenciam, que roubam nossos direitos e nos acusam indevidamente. Estamos querendo sair das convenções sociais que nos atam à mediocridade social, ao aparecer da moda em favor da manutenção do ‘status quo’. Estamos querendo sair das exceções que nos concedemos, sem querer impor-nos um mundo de regras rígidas que mais pareceriam com uma nova prisão.
Dentro de nós buscamos igualmente libertar-nos dos elogios patriarcais que ainda nos seduzem, dos olhares acusatórios quando não fazemos suas vontades, do medo da arrogância com que nos tratam e do fel que destilam em nossas vidas. Dizer basta a isso tudo como estamos fazendo em grupos e individualmente é propor novos limites de relacionamento social e político com prazer e gozo da vida. Porém, não estaríamos como maioria mais uma vez prisioneiras do mundo do discurso do desejo, do dever ser, da imaginação da justiça? Não tenho resposta clara, embora gostaria muito de tê-la. Porém, apesar disso, mais uma vez o estabelecimento de limites é uma urgência em vista do futuro da vida do planeta e do presente de nossa vida de mulheres nas diferentes dimensões da vida. O estabelecimento dos limites pelas mulheres vai tocar na necessidade de estabelecer os limites dos homens, a revisão de suas leis, de seus espaços públicos e privados, de sua ciência e tecnologia, de seus julgamentos e de suas instituições. Vai exigir que os homens se movam mais em favor da humanidade feminina, que façam da causa delas também sua causa, que reconheçam seus privilégios e se organizem com elas para sair deles. Este é um desafio do presente, um presente que já se estende por bastante tempo e ainda não mostrou todos os contornos que poderia ter mostrado.
Por isso, a preocupação com o presente é também a preocupação com o futuro, porque já não temos mais nenhuma certeza de que haverá água potável amanhã, de que os lírios do campo poderão florescer, de que nossos filhos e filhas terão o que comer e beber ou se nossos netos/as poderão ainda nascer nesse planeta.
3. Em que o futuro nos preocupa?
O presente é a preparação em germe do futuro. Ao vivermos o hoje estamos já delineando o futuro, mesmo sabendo que ele não será exatamente o que esperamos dele. Apenas a imediatez do presente, da hora atual, não nos torna os humanos que somos. Parece que ao estarmos no presente estamos igualmente suspensas ao futuro e, de certa forma, já construindo-o, como se o momento imediato se ligasse a um outro que está vindo e assim sucessivamente.
Vivemos o hoje a partir do que herdamos do passado e pensando inevitavelmente também no amanhã. Assim, é no hoje que começamos a ter a preocupação com o futuro, com os novos delineamentos da vida que parecem em parte anunciar o que virá depois. E hoje, entre tantos problemas, vivemos também uma fragmentação de identidades, muitas vezes sem estarmos conscientes dela, e uma polarização de comportamentos em que nem sempre assumimos a responsabilidade real que nos cabe na situação atual.
A fragmentação de identidades num mundo patriarcal como o nosso e a construção naturalizada de identidades opostas, hierarquizando-as, tornando-as submissas ou complementares de outras identidades, ou tornando-as totalmente autônomas e independentes de outras, convida-nos à reflexão. Esse processo de fragmentação e oposição é o que me preocupa, visto que podemos ser anexados aos que têm o poder, ou seja, aos ‘brancos privilegiados’ que nos apoiam para que tenhamos os mesmos direitos que eles. Mais uma vez são outros, os do topo da pirâmide, que dão as cartas da história e permitem minha participação e com isso expande-se o discurso de sua democracia, de sua abertura e de seu pretenso método de inclusão excludente. Mas também nós, intelectuais e feministas, delineamos um mundo onde esperamos que os outros entrem, um mundo conforme o direito idealizado que imaginamos possível, um mundo de partilha, justiça e bondade que, na realidade, é distante das conflituosas paixões humanas. Fico me perguntando se muitas vezes nós mulheres não inventamos mundos imaginários idealizados a partir dos mesmos referenciais patriarcais, achando que são outros referenciais!
Nosso presente assim construído abre enormes preocupações para o futuro, sobretudo quanto às possibilidades reais de um futuro ético mais justo e igualitário que deve começar no presente. Se o presente não plantar algo do que se quer para amanhã, o amanhã será apenas a continuação talvez um pouco diferenciada do hoje.
A responsabilidade real com o presente e o futuro significam a vivência do passo possível hoje, passo sem dúvida limitado, imperfeito, porém dentro de nossas possibilidades. Muitas e muitos de nós, hoje, frente a uma situação de violência racial não nos calamos, frente à fome endêmica não deixamos de partilhar nosso pão, frente às dominações religiosas não deixamos de levantar nossa voz para que algo mude. É nessa linha que a preocupação com o futuro se torna uma ação presente e de maneira especial para as mulheres que estão vivendo insatisfações e incertezas específicas no tempo que se chama hoje. Estamos sendo desafiadas a plantar no presente sementes diferentes, porém convergindo para um tipo de pomar ou jardim onde a diversidade de frutos possa nutrir a diversidade de pessoas. Essa convergência desejada poderia ser chamada de esperança boa, sim, porque esta palavra sempre tem se revestido de positividade, embora sempre suspensa entre o medo ou a dúvida em relação à sua realização.
Entretanto, para que esta convergência tenha chances de ser refletida e construída sugiro, como processo pedagógico, pensar em primeiro lugar nos privilégios que temos e só depois em opressões sociais mais amplas e em opressores. É uma questão sem dúvida emocional, porém não há mudanças sem que nossas emoções estejam comprometidas. Ninguém gosta de ser reconhecido como opressor ou opressora, porém não se consegue fugir do reconhecimento dos privilégios que alguns têm e usufruem, frente à falta absoluta de privilégios da maioria.
Nesse sentido, torna-se necessário desmantelar as estruturas de privilégio. E, para isso, não basta manter discursos acusatórios dos outros. É necessário enfrentarmo-nos às estruturas psíquicas e emocionais dos privilégios que sem dúvida estão em nós, e ajudam a manter sua forma estrutural que por sua vez expressa e mantêm às injustiças sociais. Falar em privilégios é falar de algo real que não se pode deixar de reconhecer, tanto individualmente quanto socialmente. Eu que estou escrevendo tenho o imenso privilégio de ter estudado, de viver num lugar protegido, de ter comida diária, livros e computador para escrever e pensar sobre o mundo em que vivemos. Na frente de minha casa há uma senhora, provavelmente mais jovem do que eu, que vive na rua, debaixo de árvores, trocando com frequência de uma para outra em outras ruas do bairro. Não tem casa, não tem comida segura, não tem lugar para se higienizar. Não me sinto sua opressora, ao contrário, meu pensamento é sempre em favor dela e de outros, porém sou privilegiada em relação a ela. E protejo meu privilégio mínimo, porque de nenhuma forma gostaria de viver como ela. Sua presença me incomoda e desafia a pensar em um mundo onde as necessidades básicas sejam garantidas. Meus privilégios, a partir de minha sensibilidade emocional e o tipo de educação que recebi, me levam a algo que chamaria de ‘obrigação ética’ de lutar para que meus privilégios mínimos em relação aos outros, sejam condições de vida acessível a outras mulheres, homens, jovens, velhos e crianças. Posso reconhecer que tenho privilégios mais facilmente do que reconhecer-me opressora de alguém. E afirmar meu privilégio me obriga mais a uma responsabilidade social do que apenas acusar as estruturas anônimas que sustentam as injustiças de muitos tipos.
As construções sociais de classe, raça e gênero podem dividir as pessoas em grupos que recebem tratamentos diferentes e, portanto, privilégios diferentes.4 Acentuam-se então as teorias sobre a superioridade e inferioridade das classes, das raças, dos sexos e gêneros, alimentando com rancores e ódios a divisão de classes sociais e suas múltiplas consequências. Além disso, as divisões conceituais, embora úteis, podem criar bloqueios emocionais a partir de certas palavras que pronunciadas por uns em relação a outros nos fazem mal e não nos ajudam a dar passos colaborativos.
É possível quebrar essas barreiras que nos distanciam uns dos outros/as? É possível que cada uma de nós mulheres feministas faça a si mesma a pergunta sobre seus reais privilégios na reprodução das divisões sociais a partir de direitos básicos?
Estas perguntas necessárias são também pedagógicas no sentido de nos incluir pessoalmente nos processos sociais que propomos. Em outras palavras, estamos também desmantelando a separação entre nosso discurso e nossa vida real, nossa ética idealista e nosso comportamento cotidiano. E bem mais do que isso, pois não se trata de apenas dirigir perguntas aos homens, às mulheres brancas ou às mulheres negras e indígenas bem situadas. Trata-se de incluir as mulheres mais pobres economicamente, as de outras culturas, num processo mais amplo de avaliação de suas outras riquezas a serem também partilhadas. E, a partir daí, compor alternativas no processo de mudança social com a sua participação, sua história, sua cultura. Essa é a grande dificuldade e desafio da pedagogia feminista, na medida em que nosso corpo é também marcado pelas formas de poder branco ocidental vigente, em que umas ‘não sabem’ e outras ‘sabem’ qual é o melhor caminho para todas.
É difícil acolher o caminho das mulheres pobres ou estrangeiras porque não entram na nossa lógica teórica e nem na história particular de nossas lutas sociais. Sem querer, nós intelectuais nos tornamos professoras ou médicas ou patroas das mais pobres, brancas ou negras ou indígenas ou estrangeiras. Sua lógica de sobrevivência pessoal nos interessa pouco, embora de nosso jeito queiramos ajudá-las. Sua lógica, muitas vezes, é considerada lenta para o ritmo de nosso intelecto, de nossas cidades, de nosso tempo em que cada minuto deve ser contabilizado e valorizado como perdas e ganhos.
Reconhecer nosso limite na proximidade das outras, na proximidade com as pessoas diferentes de nós, provoca em nós uma espécie de revolução interior, isto é, revolução por dentro de nós mesmas que nos convida a silenciar e ouvir mais e ver mais a ‘outra’. Um hiato se forma entre eu e eu mesma. Minha identidade não só de mulher, mas de educadora, de feminista, de lutadora por um mundo justo, é ameaçada, se fragmenta e sinto que me perco nas minhas próprias seguranças e valores.
Tal situação nos convida a sair de uma espécie de consideração, talvez até inconsciente, de que o conhecimento de si e do mundo só é possível a partir dos conceitos e categorias analíticas produzidas pelas classes privilegiadas e reconhecidas pela ciência das universidades. As comunidades indígenas brasileiras têm nos dado magníficos exemplos analíticos e científicos fora das categorias produzidas nos laboratórios ou nas universidades, embora seus conhecimentos sejam declarados não científicos. Da mesma forma, as comunidades negras, particularmente as mulheres, no resgate de suas tradições ancestrais africanas e mestiças e sua produção literária incomum nesses últimos anos.
A supremacia da ciência masculina branca e classista continua predominando mesmo nos meios feministas, em que a tentativa de abertura para outros mundos culturais tem sido para muitas um esforço cotidiano.5 É como se desconfiássemos de outros saberes, de outras linguagens, de outras crenças, da experiência real de pessoas de mundos culturais diferentes. Acolher essas novidades diferentes do nosso habitual é um imenso desafio para sairmos da reprodução e justificação dos sistemas de privilégio, a partir do feminismo e do caminho da inclusão no mundo patriarcal capitalista.6
Assim, na medida em que muitos grupos ou pessoas que se assumem como simpatizantes do feminismo e buscam também aceder aos mesmos espaços capitalistas como expressão de seu ‘direito’, há uma espécie de reforço de privilégios e não de desmantelamento ‘disso’ que cria as desigualdades culturais, sociais e econômicas e favorece muitas formas de violência local, nacional e internacional.
O risco de reproduzir o que condenamos está sempre presente, sobretudo quando queremos aceder aos benefícios e privilégios que a sociedade de consumo oferece sem analisar também os reais danos que causa, não só para os pobres, mas para nós mesmas. Muitas vezes, sem perceber, fazemos uma análise que focaliza apenas na opressão dos pobres, o que é de fato real, mas não percebemos que na realidade o sistema capitalista das elites está criando a longo termo para as elites mesmas uma bomba atômica, tornando para elas a vida inviável no planeta e inviável para o próprio planeta. Suas ações exploratórias estão levando o planeta à morte e, portanto, suas riquezas fruto da exploração ‘científica’ e ‘tecnológica’ do mesmo planeta, fruto do acúmulo de pesticidas e poluição também se extinguirão em breve. Tal postura abre-nos para a visão ecológica e cósmica do ecofeminismo, para um humanismo aberto, incluindo-se aqui as éticas e as religiões. Uma mudança em nossos hábitos é exigida, um recuo de nossa vontade exploratória marcada pela ganância se faz necessária, porém a grande maioria não aceita esse limite. E então surgem os negacionismos que mantêm a ilusão de que tudo está bem nesse mundo ou nesse projeto de mundo desenvolvimentista, considerado o melhor dos mundos.
Discursos que apenas falam do progresso sem pensar nos limites do progresso, pregações que falam da igualdade sem pensar nas políticas e nos limites da igualdade, livros que falam de justiça sem mostrar onde e como se opera. Esses discursos ganham mais e mais terreno do que uma abordagem mais simples da vida e de suas necessidades cotidianas. É nessa linha que as ações do presente em vista do futuro são preocupantes e nos convidam a agudizar ainda mais as nossas ações e reflexões críticas feministas para além das teorias que podem enclausurar-nos em conceitos capazes de tirar nossos pés da realidade das pedras sempre presentes em nosso caminho. Um passo depois do outro, uma horta sem agrotóxicos, o lixo seletivo, a produção de energias recicláveis, os bancos comunitários, a educação infantil e juvenil a partir de valores comunitários, ateliês de roupas recicladas, a ajuda entre vizinhos e tantas pequenas ações que podem formar o caráter das pessoas em vista de uma solidariedade sempre maior.
Crescemos em qualidade de relações a partir do miúdo da vida. Crescemos em justiça quando não fechamos nossas portas às necessidades de outros hoje, aqui e agora. Crescemos em igualdade quando não impomos aos nossos filhos e filhas os privilégios de gênero que o mundo patriarcal naturalizou e tantas outras coisas. Coisas pequenas, caminhos pequenos transformam o vasto mundo!
4. As incertezas do presente como tela de fundo para o futuro
O presente é o momento do hoje, embora se estenda para aquém e para além de seu lugar e tempo mais circunscrito. É nesse tempo cotidiano amplo e extenso que vivemos nossas insatisfações e incertezas originadas em nossa vida. Qual seria a especificidade das incertezas do presente a partir das lutas feministas? Será que estamos alcançando algumas pequenas vitórias naquilo que estamos buscando, ou apenas incertezas? O que há de novo?
De fato, conseguimos muitos direitos, leis protetivas que, a partir de nossas lutas, foram se integrando às leis do Estado, foram modificando comportamentos, linguagens, expressões culturais e até religiosas. Mas, conseguimos tudo isso dentro desse regime capitalista que percebeu a necessidade de nos acolher, ao menos juridicamente, como cidadãs de deveres e direitos iguais. Ele vai se transformando a partir de nós e acolhendo, ao menos em parte, nossas reivindicações. Porém, não podemos deixar de lembrar que a misoginia e o machismo revanchista estão na ordem do dia. Seguem nos atacando, seguem destruindo nossas conquistas e criando-nos armadilhas para desmanchar a qualidade dos nossos passos. Cultura minoritária a nosso favor e cultura negacionista de nossos direitos contra nós sobrevivendo ao mesmo tempo e no mesmo contexto social.
Penso que podemos constatar um avanço na superação de modelos antes pré-fixados para as mulheres. Embora muitas vezes tenhamos dúvidas em relação às nossas conquistas, temos que constatar alguns progressos significativos. Antes parecia que estava inscrito na cultura e em nossos corpos o que seríamos, ou melhor, por natureza já éramos esposas, mães, amas de casa, servidoras, dependentes das instituições e dos senhores homens da família. Apesar de mais de um século de evolução do estatuto social das mulheres em quase todas as partes do mundo, apesar das mudanças na compreensão do que são famílias, vivemos hoje outro momento.
Além da continuidade de nossa luta social por direitos, estamos vivendo uma grande mobilidade identitária social que não depende apenas de nós, mas das condições sociais atuais de nosso mundo. Nossa luta interage com outras que muitas vezes somam conosco, mas também que muitas vezes são contrarias à nossa emancipação e ao respeito aos diferentes grupos que somos. Por isso a consciência da polarização e beligerância da sociedade se faz como conquista absolutamente necessária para nossa consciência social e nossas esperanças futuras. E isto porque é no meio dela, com nossa luta cotidiana, que temos também de viver o gozo celebrativo, a alegria de viver, a esperança mais ou menos realizada e o reconhecimento de que céu e inferno se misturam nesse planeta de muitas dimensões e habitantes.
A luta por justiça e direitos que estamos fazendo é a nossa conquista hoje, é o bem que já alcançamos em parte. Acreditar que o mundo será só bom e totalmente favorável a causa da justiça amanhã significaria um apagamento da esperança real e da diversidade do que esperamos. Acreditar que só o ‘nosso’ bem vencerá é negar a condição ‘misturada’ que somos. Com isso não estou defendendo uma espécie de derrotismo de nossas lutas, mas afirmando a necessidade de consciência das reais dimensões dos ganhos e das perdas em tudo o que fazemos em meio a uma complexa realidade que é a nossa. Há sempre avanços e recuos, mas é preciso sempre ir adiante e acolher as gotas de alegria e as pequenas vitórias que nascem em nosso jardim.
Hoje, mesmo o que chamamos de lutas feministas não tem mais um centro único, muito embora os sujeitos sejam as mulheres e sua diversidade de direitos. A beligerância entre os diferentes movimentos dentro do Movimento Feminista está na ordem do dia. Concordamos, discordamos, criticamos, apoiamos. Nos fragmentamos e nos reorganizamos em diferentes categorias, cores e culturas. É assim que estamos vivendo e é nessa situação que o convite para revermos nossas posturas e nos unirmos em torno de algumas pautas comuns se torna urgente.
Para além da diversidade econômica, étnica, de gênero e de idades tão fortemente presentes nas lutas feministas, há algo mais que nos invade, nos torna inseguras e nos interroga em relação ao presente e ao futuro. É que não poderemos viver naquilo que acreditamos se o planeta na sua completude não for cuidado através das ações humanas. Tal movimento é grandioso demais e sua urgente necessidade é capaz de gerar muitas interrogações em relação a aquilo que estamos vivendo. Podemos pensar nas lutas por justiça e direitos e colapsar a vida do planeta se não nos abrirmos para a consideração de que nosso corpo é também o corpo do planeta. Abrimo-nos assim para uma luta comum inscrevendo nela nossas lutas específicas. Tal atitude também nos é sugerida pela atual pandemia que assola o planeta e nos convida a darmo-nos as mãos em favor da vida de todas/os.
Por isso, ao refletir o chão de nossas insatisfações e incertezas do presente temos que admitir que estamos envolvidas por questões maiores, globais, planetárias, que tocam a própria sobrevivência do planeta. Mais uma vez, devemos admitir que essa problemática de destruição global do planeta tem a ver com as construções, especialmente do pensamento masculino tecnológico da modernidade e pós-modernidade, com a nossa anuência maior ou menor a estas escolhas.
A situação global presente atinge também as novas imagens identitárias de mulheres. Estas, muitas vezes, se adequam às produções do Mercado capitalista que pouco têm a ver com as lutas sociais do feminismo. O Mercado capitalista aliado às muitas tradições culturais confunde nossas lutas, nos tira de um foco ético comum mesmo a nível de nossas análises. Em outras palavras, a revolução feminista se fará de forma conturbada e misturada também no interior dos feminismos vigentes.
O movimento feminista, na sua diversidade de expressões plurais mundiais, não se realiza fora da dominação capitalista atual. Esta, sempre oferece novas imagens de si para as mulheres, recupera as marginalizadas para o Mercado, as integra parcialmente e sempre tenta adequar a imagem real de nossos corpos a uma imagem mercantil aceita, aprovada e que poderia até ser imitada. Mesmo as imagens de rebelião dos corpos femininos desenhando-se, tatuando-se com motivos os mais plurais, com cores diversificadas revelando uma espécie de mostração diferente dos corpos é integrada como produto. Nos corpos onde se inscrevem amores e causas defendidas, mesmo que esses amores não sejam eternos e nem as nossas causas perenes, já estão sendo resgatados e suas intenções modificadas. Vive-se uma certa contradição de interpretações, de visões, de convicções do momento. E é nesse contexto que buscamos também a inspiração no passado de nossas tradições e imaginamos um futuro diferente.
Os feminismos, em particular o negro e o indígena na América Latina, têm se lançado em buscar formas de ancestralidade feminina nas muitas tradições antigas. Embora tal busca seja importante e signifique não só o resgate valorativo dessas culturas e nelas o lugar preponderante das mulheres, se corre o risco de se tornar ‘moda’ com uma expressão midiática enorme e uma imperceptível nova forma de dominação e cooptação. Minha preocupação é que essas conquistas se dão também através das águas impuras do sistema capitalista excludente. O mesmo que matou e mata indígenas e a população negra permite o resgate de parte dessa cultura, mostrando-a muitas vezes de forma elitizada, capaz de ser acolhida pelos donos/as do poder cultural vigente. A mídia comprova esse resgate.
Sinto um certo mal-estar frente a essas minhas suspeitas. Gostaria que fossem menores, mas constato que não são, pois tocam igualmente o mundo das religiões e da vida cotidiana que acaba também se misturando à recuperação capitalista vigente em suas diferentes expressões.
Corram beber das águas puras encontradas nas religiões? Ou leiam de novo os pensadores políticos, os literatos que analisaram as sociedades de suas épocas? Ou mirem-se nas sociedades primitivas que não tinham a ganância e a dominação que temos? Ou retomem os mitos antigos para que vejam a crueldade dos seres humanos do passado...
O passado sustenta-se de nosso presente. Direcionamos nossa leitura do passado tentando perceber as novidades, as diferenças, os aprendizados inevitavelmente reinterpretados por nós. As emoções e esperanças do presente na leitura do passado são as emoções do presente. E isto porque mesmo cientificamente não conseguimos, culturalmente e emocionalmente, nos transportar para o passado como tal. O passado nos toca como nota ouvida e sentida no presente e o que admiramos nela é a sua adequação construída por nós mesmas/os ao nosso presente, é sua capacidade de fazer-se ouvir, mesmo transformada pelo presente.
Então o passado torna-se em nós presente e é nessa condição que pode nos instruir e inspirar nossas ações. Em outras palavras, permitir que o passado seja passado e que ele seja para nós apenas um presente ligado ao passado, um presente que interpreta o passado e que mostra as possibilidades de aprendizagem inspiradas por ele. Evitar a tentação de tornar nossas culturas tradicionais, nossas lutas do passado ‘Palavra de Deus’ como se fez com os escritos culturais bíblicos. Permitir que sejam palavras humanas, limitadas, contextuais, transitórias e parte integrante dessa História sempre em movimento que é a nossa. Acolher as nossas limitações e a nossa mistura são passos importantes para a superação das incertezas do presente. Incertezas que são a nossa realidade vital. Incertezas que não podem se transformar em certezas pois, se assim fosse, o fluir da história pararia e nós terminaríamos de existir. Incertezas bem-vindas porque nos fazem avançar e fazem avançar os caminhos coletivos.
Breve conclusão: o reencontro com o presente
As incertezas, as perguntas, as dúvidas, a mistura nos devolvem ao presente e a nós mesmas. Nos convidam a reencontrá-lo de forma mais acolhedora e real, apesar das inquietações que causa. O que significa reencontrar o presente? Não é fácil responder de forma clara e convincente a essa pergunta. Pode parecer que estamos numa espécie de jogo de linguagem, sobretudo quando já afirmamos que o presente é nossa condição imediata única e é a partir dele que trazemos de volta o passado e pensamos algo do futuro.
Quando falo do reencontro do presente falo de algo bem pequeno e ao mesmo tempo difícil. Pequeno porque começa conosco mesmas, com nosso corpo, com nosso entorno, com as pessoas mais próximas de nossa convivência, com nossa rua, nosso bairro, nossa cidade e depois, só depois, com as mais distantes. Essa cotidianidade imediata não pode ser esquecida. Não podemos realizar um grande salto sem exercitar nosso corpo inteiro aos pequenos. E, a cada encontro conosco e com os mais próximos, não aprisioná-los a uma maneira de ser, a um dever ser que julgamos ser o mais perfeito. Não me refiro aqui às condições necessárias para a higiene e a manutenção da vida, embora possa também as incluir. Refiro-me a uma diminuição de nossa expectativa em relação ao perfeito, ao excelente, ao puro, à teoria exterior a nós; refiro-me à necessidade de aproximação maior do imperfeito, do sujo, do suave, do brusco, do murcho, do degradado, do incerto próximos de nós. Quero reencontrar as expressões de sua existência como parte da vida, como parte real de nosso mundo em contraste com a exuberância fugidia do instante em que se inscreve nas coisas. Quero que nos aproximemos das soluções próximas e possíveis sem esquecer a interconexão de todos os problemas com todos os problemas num mundo que se tornou uma aldeia virtualmente conectada.
A extensão virtual de nossa conexão ao mundo nos leva muitas vezes a esquecer de olhar o mundo de nossa janela, a sentir o cheiro das pessoas, a olhar-lhes o rosto de muitas cores, cicatrizes e rugas. A condição limitativa da pandemia covid-19 que nos acomete nos limita também no pensamento do mundo, no esquecimento da importância da proximidade para sentir a vida. Reclusão imposta e necessária, porém convidando-nos a não esquecer quem somos, a acercar-nos o mais possível de vidas vivas, a sentirmos, mesmo com limites inevitáveis, a força da vida viva.
Deixo assim o filosofar e entro no poetar como forma de expressar por aproximações o que não se pode expressar com clareza. O poetar introduz-se na filosofia tornando-a mais completa, menos limitada a uma racionalidade formal, mais próxima do ‘não saber’ que nos caracterizada desde nossas raízes as mais profundas.7 O ‘não saber’ que nos instiga a saber, a descobrir, a tomar posse e a acolher de novo o ‘não saber’ como dádiva da vida. Pois é, aquele esterco caseiro foi antes um pomar de laranjas, foram batatas, vagens e alfaces apodrecidas e muitas outras coisas também. A poesia diz sem dizer... Apenas convida o pensamento a ser menos arrogante, mais humilde, mais próximo do humus que o constitui, mais úmido, mais vital, mais misterioso.
Finalmente, talvez, encontramos os limites de nossos limites epistemológicos e éticos como condição para continuar nossa busca e nosso caminho comum. Finalmente, talvez, vislumbramos no hoje alguns caminhos, pequenos, sendas, atalhos e até à noite algumas luzes de candieiro para encontrar a vida que nos habita para além dos conceitos fechados, para além dos polimentos teóricos, para além dos quilômetros bibliográficos que nos dão segurança de sua cientificidade.
Cusicanqui, Silvia Rivera. 2018. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón.
Gebara, Ivone. 2020. Ensayo de Antropología Filosófica. El arte de mezclar conceptos y plantar desconceptos. Navarra: Verbo Divino.
Hobgood, Mary Elizabeth. 2000. Dismantling Privilege. An Ethics of Accountability. Cleveland, Ohio: Pilgrim Press.
Husserl, Edmund. 2020. A ideia da Fenomenologia. Cinco lições. Petrópolis: Vozes.
Krenak, Ailton. 2019. Ideias para adiar o fim do mundo. Rio de Janeiro, Companhia das Letras.
Rolnik Sueli e F. Guatari. 2006. Micropolítica. Cartografia del deseo. Buenos Aires: Tinta Limón.
1 Teóloga brasileña ecofeminista. Doctora en Filosofía por la Universidad Católica de São Paulo (Brasil) y doctora en Ciencias Religiosas por la Universidad Católica de Lovaina (Bélgica). Se destaca entre las pensadoras ecofeministas latinoamericanas. Fue profesora durante 17 años en el Instituto de Teología de Recife (Brasil), hasta su disolución decretada por el Vaticano en 1999; desde entonces dedica su tiempo a actividades comunitarias y sociales con grupos de mujeres, y también a actividades académicas, principalmente escritos, cursos y charlas sobre hermenéuticas feministas, nuevas referencias éticas y antropológicas y los fundamentos filosóficos y teológicos del discurso religioso. Varios de sus libros y artículos están traducidos y/o publicados en portugués, español, francés, inglés y alemán.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6209-7299
2 Silvia Rivera Cusicanqui, Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. (Buenos Aires: Tinta Limón, 2018), 142.
3 Edmund Husserl, A ideia da Fenomenologia. Cinco lições. (Petrópolis: Editora Vozes, 2020).
4 Mary Elizabeth Hobgood, Dismantling Privilege. An Ethics of Accountability. (Cleveland, Ohio: Pilgrim Press, 2000).
5 Sueli Rolnik e F. Guatari, Micropolítica. Cartografia del deseo. (Buenos Aires: Tinta Limón, 2006).
6 Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo. (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2019).
7 Ivone Gebara. Ensayo de Antropología Filosófica. El arte de mezclar conceptos y plantar desconceptos. (Navarra: Verbo Divino, 2020).
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