Revista de Teología
Revista de Estudios Sociorreligiosos
Volumen 16, Número 1, 2023
ISSN 2215-227X • EISSN: 2215-2482
Recibido: 26/1/2022 • Aprobado: 6/2/2023
Doi: https://doi.org/10.15359/siwo.16-1.4
URL: https://www.revistas.una.ac.cr/index.php/siwo
Licencia (CC BY-NC 4.0)
IMPLICAÇÕES BIOÉTICAS PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL1
Implicaciones bioéticas para el desarrollo rural sostenible
Bioethical implications for sustainable rural development
Juliane Vanderlinde Hort
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável
Paraná, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-5406-6430
Alvori Ahlert
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável
Paraná, Brasil
http://orcid.org/0000-0001-9984-6409
Wilson João Zonin
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável
Paraná, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-3364-5599
Resumo:
Considerando os avanços e as tecnologias da produção convencional de alimentos e as relações já evidenciadas com consequências devastadoras para a saúde humana e o meio ambiente, o presente artigo traz discussões, através de uma revisão bibliográfica, sobre a gênese interdisciplinar da bioética e o discurso de autores da bioética ambiental global e sustentabilidade: Van Renssealer Potter, Raquel Carson, Lutzemberg, Moltmann, Leonardo Boff e Jaime Breilh. O conhecimento da bioética dentro do desenvolvimento rural sustentável, relacionado principalmente à questão dos agrotóxicos, faz-se necessário quando se pensa em uma educação interdisciplinar ambiental e de saúde. Além de capacidades anato-fisiológicas, o ser humano é também um ser social, cultural, com valores e, igualmente, um ser ambiental, onde o ambiente e as atividades que exerce estão totalmente conectados a sua saúde e qualidade de vida.
Palavras chaves: desenvolvimento rural sustentável; bioética; saúde pública.
Resumen:
Considerando los avances y las tecnologías de la producción convencional de alimentos y las relaciones ya evidenciadas con consecuencias devastadoras para la salud humana y el medio ambiente, este artículo presenta debates, a través de una revisión bibliográfica, sobre la génesis interdisciplinaria de la bioética y el discurso de autores de la bioética ambiental global y sostenibilidad: Van Renssealer Potter, Raquel Carson, Lutzemberg, Moltmann, Leonardo Boff y Jaime Breilh. El conocimiento de la bioética dentro del desarrollo rural sostenible, relacionado principalmente con el tema de los pesticidas, es necesario cuando se piensa en una educación interdisciplinaria ambiental y de salud. Además de las capacidades anato-fisiológicas, el ser humano también es un ser social, cultural, con valores e, igualmente, un ser ambiental, donde el entorno y las actividades que ejerce están totalmente conectados con su salud y calidad de vida.
Palabras clave: desarrollo rural sostenible; bioética; salud pública.
Abstract:
Considering the advances and technologies of conventional food production and the relationships already evidenced with devastating consequences for human health and the environment, this article brings discussions, through a bibliographic review, on the interdisciplinary genesis of bioethics and the discourse of authors of global environmental bioethics and sustainability: Van Renssealer Potter, Raquel Carson, Lutzemberg, Moltmann, Leonardo Boff and Jaime Breilh. The knowledge of bioethics within sustainable rural development, mainly related to the issue of pesticides is necessary when thinking about interdisciplinary environmental and health education. In addition to anato-physiological capacities, the human being is also a social y cultural being, with values and, equally, an environmental being, where the environment and the activities that exercises are totally connected to his health and quality of life.
Keywords: sustainable rural development; bioethics, public health.
Diante dos desafios impostos pelas crises ambientais, a busca por um desenvolvimento sustentável tomou forma e se expandiu para todas as áreas, pois, segundo Ahlert (2017), a crise ecológica, da mesma forma que a crise da própria civilização, configura-se no contexto das crises sociais, alimentares, migratórias, de empregabilidade, de conflitos pela água, pela habitação, saneamento básico e saúde.
A sustentabilidade não é apenas a busca de tecnologias limpas e obtenção de produtos sustentáveis. Ela deve buscar a empatia e solidariedade universal da sobrevivência digna para todos os seres, deve amparar as categorias menos favorecidas no acolhimento de todas as formas de vida de modo inclusivo. Não há como falar de sustentabilidade sem considerar sua principal grandeza, a dimensão ética, tão bem definida por Leonardo Boff, para quem,
Sustentabilidade é toda ação destinada a manter as condições energéticas, informacionais, físico-químicas que sustentam todos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida, a sociedade e a vida humana, visando sua continuidade e ainda atender as necessidades da geração presente e das futuras, de tal forma que os bens e serviços naturais sejam mantidos e enriquecidos em sua capacidade de regeneração, reprodução e evolução (Boff, 2016, p. 116).
É necessário reconhecer a dignidade e o valor existencial de seres vivos não-humanos. Sem isto, o interesse da efetiva proteção do meio ambiente, da economia e do bem-estar social passa a ser apenas um discurso humano (Lourenço; Oliveira, 2012).
Ao serem identificadas as primeiras consequências das mudanças climáticas, da eclosão populacional após a segunda guerra mundial, da exploração maciça de recursos naturais não renováveis e da consolidação de novas tecnologias, principalmente atômicas, químicas e biológicas, foi possível enxergar a possibilidade de um colapso ecológico global premente em torno do século XX. Van Rensselaer Potter, em 1970, indicou a bioética como um campo do conhecimento voltado para o estudo da sobrevivência da humanidade no contexto da sobrevivência do planeta como um todo. Colocou-se em discussão uma bioética global (Fischer, 2017).
A partir da década de 1970, as discussões ambientais ganharam maior ênfase, porém, somente em 1987 o conceito de desenvolvimento sustentável passa a estar presente através do relatório Nosso Futuro Comum, da Comissão Brundtland da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1992, ocorreu no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92), conferência na qual foram propostas, através da Agenda 21, medidas que objetivavam tornar o crescimento da economia mundial mais sustentável (Dicionário da Terra, 2005). A proposta foi de um desenvolvimento que atenda as atuais gerações sem comprometer a vida de qualidade das futuras gerações, traduzido por Ahlert para o campo preferencial da eticidade da educação da seguinte forma:
[...] um desenvolvimento sustentável que satisfaça as necessidades das gerações presentes sem sacrificar as gerações futuras; que promova qualidade de vida sem comprometer a sustentabilidade dos ecossistemas, que transforme as relações de gênero, que estimule a vida comunitária e a cidadania e efetive o direito inalienável das crianças. (Ahlert, 2003, p. 171).
No contexto das práticas agrícolas, o desenvolvimento sustentável objetiva a manutenção dos recursos naturais e da produtividade agrícola com os mínimos impactos adversos ao ambiente, gerando retorno adequado aos produtores e otimização da produção sem a utilização de insumos químicos (Veiga, 1994).
O resultado de emergentes pressões sociais por uma agricultura que não prejudique o meio ambiente e a saúde do ser humano indica o desejo social de sistemas produtivos a fim de conservarem os recursos naturais, aliados com a geração de produtos saudáveis, sem comprometer os níveis tecnológicos já alcançados de segurança alimentar. Para Costa (1993), a agricultura sustentável deve buscar maior eficiência dos sistemas de produção agrícola, e esta deve ser compatível e coerente com cada realidade ecológica.
É interessante ressaltar que a tecnologia impulsionou grandes e extraordinários avanços para o homem e, como coloca Westphal (2006a, p. 6), “a ética no âmbito da ciência é determinada por aquilo que é tecnicamente possível, bem como pelos benefícios e pela utilidade prática de determinada descoberta”. No entanto, a bioética surgiu para realizar um resgate dos valores éticos dentro do contexto das descobertas. Mesmo com todos os benefícios existentes em decorrência dos avanços científicos, a bioética, a rigor, “trata da sobrevivência de todo o ecossistema, pois surge em virtude das ambiguidades que a ciência e a tecnologia encerram: os mesmos avanços têm um potencial de beneficência e de malevolência” (Westphal, 2006a, p. 6), ou seja, em meio a todas as descobertas científicas que, em tese, vieram para o bem, existe inegavelmente a possibilidade de se fazer o mal.
Considerando os avanços e tecnologias da produção convencional de alimentos e as relações já evidenciadas com as consequências devastadoras para a saúde humana, e por se tratar de um tema recente na história da saúde, no que se refere às questões ambientais atreladas ao uso indiscriminado de agrotóxicos, para iniciar a discussão da bioética no desenvolvimento sustentável faz-se necessário a contextualização do conceito bioética e a exposição dos marcos históricos do seu desenvolvimento como disciplina.
O presente estudo traz uma reflexão, através de revisão bibliográfica, sobre os desafios éticos e bioéticos existentes na construção de um desenvolvimento rural sustentável, abordando o conceito da bioética, suas teorias e seus principais autores. O objetivo foi identificar questões relativas à dimensão da bioética a serem incorporadas no Desenvolvimento Rural Sustentável-DRS e nas ações de saúde pública em que a enfermagem atua.
Este estudo constitui uma revisão bibliográfica de caráter analítico, cuja coleta de dados foi desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos e assim caracterizando-se como um artigo de revisão (Carvalho, 2002; Gil, 2002; Gil, 1999).
Trata-se de uma revisão integrativa da literatura que teve como objetivo buscar artigos, livros e outros documentos em plataformas como SCIELO, PUBMED, entre outras, a fim de discutir sobre as implicações bioéticas para o desenvolvimento rural sustentável em um contexto interdisciplinar. As reflexões e análises fundamentam-se nos referenciais da biologia de Rachel Louise Carson, da medicina de Jaime Breilh e enfermagem de Christian de Paul de Barchifontaine, da agronomia de José Lutzenberger, da filosofia de Olinto A. Pegoraro e da teologia de Jürgen Moltmann, Leonardo Boff, Leo Pessini e Euler Westphal, autoras e autores que se destacam sobre o tema em estudo na Europa, na América do Norte e América do Sul. Sua reflexão é levada a um diálogo interdisciplinar pelos autores da presente pesquisa, sobre as questões da bioética no contexto do desenvolvimento rural sustentável.
A interdisciplinaridade do Programa de Pós-graduação de Desenvolvimento Regional Sustentável (PPGDRS) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) “relaciona e promove a interação permanente entre pesquisa e extensão, como formas de retroalimentar o ensino, reforçar constantemente a inserção regional da Unioeste nos 92 municípios das regiões oeste e sudoeste do Paraná” (Zonin et al., 2020, p. 20). É neste contexto que nossa pesquisa promove a discussão da bioética voltada para as questões do desenvolvimento rural sustentável.
3.A bioética e sua gênese interdisciplinar
A bioética “se amplia com vista à sobrevivência de toda a biosfera” (Ahlert, 2017, p. 46). O autor desenvolve sua tese de que esta nova ciência interdisciplinar se torna uma dimensão fundamental na busca do desenvolvimento rural sustentável.
A bioética possui, assim, uma dimensão universal construída na diversidade dos saberes multi e interdisciplinares que buscam garantir e proteger todos os seres vivos e tudo aquilo do qual depende essa vida para que se desenvolva com qualidade e bem-estar. Para que todas as ações construídas no presente sejam crivadas pelos questionamentos com relação às futuras implicações (Ahlert, 2017, p. 46).
Conceitos que definem a bioética foram sendo atualizados conforme seu desenvolvimento e consolidação acadêmica como disciplina. Na primeira edição da enciclopédia de bioética, em 1978, sua definição era trazida como um “[...] estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e princípios morais” (Pessini; Barchifontaine, 2008, p. 32). Entretanto, estes autores já evidenciavam que, na construção de seu conceito, a bioética não se limita à medicina, embora abarque questões éticas relacionadas a ela.
A bioética constitui um conceito mais amplo, com quatro aspectos importantes: - engloba os problemas relacionados aos valores que surgem em todas as profissões de saúde, inclusive nas profissões afins e aqueles vinculados à saúde mental; - aplica-se às pesquisas biomédicas e comportamentais, independentemente de influírem ou não de forma direta na terapêutica; - aborda uma ampla gama de questões sociais, relacionadas com a saúde ocupacional e internacional e com a ética do controle de natalidade, entre outras; - vai além da vida e saúde humanas, enquanto compreende questões relacionadas à vida dos animais e das plantas, por exemplo no que concerne às pesquisas em animais e demandas ambientais conflitivas (Pessini; Barchifontaine, 2008. p. 32).
A partir de então, a difusão da bioética se deu justamente como resposta às preocupações da sociedade com as implicações políticas e sociais do desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da medicina, tornando-se uma área compromissada, segundo Diniz e Guilhem, “com o conflito moral na área da saúde e da doença dos seres humanos e o dos animais não humanos” (Diniz; Guilhem, 2002, p. 28), cujas temáticas relativas às situações de vida têm acompanhado a história da humanidade.
A proposta inicial de Potter era uma atuação interdisciplinar do conhecimento direcionado a garantir a sobrevivência da humanidade, que se deparava com situações de riscos causados por ações humanas e por desordens naturais, e não uma abordagem puramente biomédica, como se tornou o conceito posteriormente. Para Potter tratava-se de uma abordagem global que pouco se aproximava do que mais tarde seria reconhecido como o campo hegemônico da bioética (Cunha, 2017).
A bioética é interdisciplinar e de identidade instável, onde repensa seus marcos teóricos em função dos seus avanços. Encontra-se na confluência dos saberes tecnocientíficos, em um espaço aberto de uma sociedade pluralista, onde concepções diferentes são confrontadas e ocorre o debate sobre o sentido ético da vida e da morte. Historicamente, a bioética se preocupou com três temas: a eco-ética com a preservação ambiental, as descobertas tecnocientíficas, e a relação da tecnociência com as três formas de vida, humana, animal e vegetal, no que se refere também à manipulação genética (Pegoraro, 2002).
Potter apresenta a bioética como uma ponte entre a ciência biológica e a ética. Sua intuição consistiu em pensar que a sobrevivência de grande parte da espécie humana, em uma civilização decente e sustentável, dependia do desenvolvimento e manutenção de um sistema ético. Na introdução de Bioethics: bridge to the future, afirmava:
Se existem duas culturas que parecem incapazes de dialogar – as ciências e humanidades – e se isto se mostra como uma razão pela qual o futuro se apresenta duvidoso, então, possivelmente, poderíamos construir uma ponte para o futuro, construindo a bioética como uma ponte entre as duas culturas. As duas margens ligadas por esta ponte são os termos gregos bios (vida) e ethos (ética), sendo que bios representa o conhecimento biológico, a ciência dos sistemas vivos, e ethos o conhecimento dos valores humanos. Potter almejava criar uma disciplina em que promovesse a dinâmica e a interação entre o ser humano e o meio ambiente (Pessini, 2013, p.11).
A bioética considera a sobrevivência de todo o ecossistema, e surgiu em torno das ambiguidades da ciência e da tecnologia no que se refere aos avanços científicos que possuem, ao mesmo tempo, um potencial de beneficência e de maleficência. Entende-se o conceito, que depois se formalizou em disciplina, como uma das contribuições e expressões legítimas da pós-modernidade, pois propõe discussões de caráter multidisciplinar (Westphal, 2006a; Westphal, 2006b).
O termo Bioética é um neologismo advindo do grego bios e ethike, a compreensão original do termo (...) propõe ser necessário que cientifica, no campo da biologia, inclua preocupações éticas voltadas para o respeito à dignidade humana, aos animais e ao meio ambiente, ou seja, incluindo a biosfera como um todo. Assim a Bioética estuda, de forma sistemática, a conduta humana no campo da ciência e da saúde, à luz da preocupação ética numa perspectiva multidisciplinar (Westphal, 2004, p.117).
Com o uso da técnica, o ser humano rompeu com qualquer ideia de limite, pois o pressuposto passou a ser o que pode ser pensado deve ser realizado, em vistas a atingir antigos sonhos e desejos que pertenciam somente à imaginação e, com a modernidade, tornaram-se realidade. Esse processo de dominação do homem sobre a natureza fez esvaecer a ideia de causas finais, relação moral e contemplação da natureza. No entanto, a necessidade de reconhecer a dignidade da natureza surge quando esta revela os danos e estragos provocados pelo ser humano, que, como consequência, trouxeram riscos à sua própria sobrevivência (Fischer et al., 2017).
4.Marcos históricos da bioética
A bioética veio para auxiliar na resolução tanto de problemas emergentes como persistentes, e se trata de uma aplicação prática e interdisciplinar da ética em saúde. A bioética é um discurso de tolerância, pois entende que existe uma pluralidade moral na humanidade. Na história da medicina era o médico que se responsabilizava por tudo, tendo o poder de decisão do corpo clínico, sem a participação do paciente e seus familiares. Com o advento da democracia, é preciso não só ouvir o paciente, mas respeitar sua autonomia de decisão. A partir destes conceitos é possível verificar que há grandes possibilidades para a bioética contribuir consideravelmente na revitalização das questões filosóficas e éticas (Pegoraro, 2002).
Um dos marcos históricos importantes no surgimento da bioética foi a publicação do livro, já citado anteriormente, Bioethics: Bridge to The Future, que ocorreu em 1971, por Van Rensselaer Potter, bioquímico e professor de oncologia da Escola Médica da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos da América, e que representaria um novo campo de atuação científica, normativa e institucional estabelecido no final daquela década no país (Cunha, 2017).
Como biólogo especialista em imunologia do câncer, Potter utilizou de seu conhecimento sobre os processos naturais para problematizar a capacidade de adaptação humana em um contexto de aceleradas mudanças ambientais. Dedicou-se a refletir sobre ecologia, meio ambiente e estudos populacionais, tratando a bioética como um campo estruturado não apenas no discurso científico tradicional, mas no desenvolvimento da sabedoria, compreendida pelo autor como o uso do conhecimento para o bem social (Cunha, 2017).
Potter retratou a bioética como uma ponte entre ciência biológica e ética, sendo que grande parte da sobrevivência da espécie humana numa civilização, dependia do desenvolvimento e da manutenção de um sistema ético. Em 1988, Potter ampliou a bioética em relação a outras disciplinas, ao indicar que não se trata somente de uma ponte entre a biologia e a ética, mas de uma ética global (Pessini; Barchifontaine, 2008).
Em seu livro Global Bioethics, de 1988, fez uma análise mais ampla sobre os fatores sociais, econômicos e culturais que devem estar envolvidos na discussão ética sobre a sobrevivência adequada da humanidade. Para Cunha (2017), embora tenha sido escrito há mais de 40 anos, o livro continua atual e pertinente, pois problemas como alterações ambientais e superpovoamento não foram superados.
Considerações posteriores de Potter permitem explicar o motivo pelo qual sua produção bioética voltada para as questões ecológicas e ambientais foi ignorada até o final dos anos 1990, quando houve o redescobrimento de suas ideias na Europa. Entre elas, destacam-se o pragmatismo do principialismo, o avanço do conservadorismo econômico nos EUA a partir dos anos 1970 e a desconfiança a qualquer crítica à ideia de livre-mercado e desenvolvimento que poderia ser realizada na época. Em uma de suas últimas manifestações públicas, Potter desabafou sobre as discussões da bioética global, expressando que efetivamente ocorreu uma explosão imediata do uso da palavra bioética no meio médico, mas que este deixou de mencionar seu nome ou suas publicações de 1970-1971. Para Potter, infelizmente, a imagem da bioética apresentada nesse momento histórico acabou por atrasar o surgimento do que existe atualmente (Fischer et al., 2017).
O segundo autor é o médico anestesista estadunidense Henry Beecher, com a obra Ética e pesquisa clínica, na qual o pesquisador apresenta 22 relatos de pesquisas realizadas e financiadas com recursos do governo, de empresas de medicamentos e laboratórios da época, em indivíduos que eram chamados de segunda classe, causando assombro na comunidade científica. Os indivíduos eram idosos, prisioneiros, crianças e portadores de deficiência, ou seja, pessoas sem capacidade intelectual e moral para se defender diante de qualquer experimento. Tais sujeitos de pesquisa, como no caso dos idosos, chegaram a receber injeções de células tumorais para que pudessem analisar seu desenvolvimento, sem o menor conhecimento da situação (Diniz; Guilhem, 2002).
Tal época conflituosa para a experimentação científica teve também como um marco histórico o caso de Tuskegee, que ocorreu entre 1930 e 1970, onde 400 pessoas negras portadoras de sífilis e economicamente vulneráveis, receberam placebo como tratamento pelo serviço de saúde pública norte americano. O objetivo era verificar como a doença da síflis evolui no corpo humano. Todos os pacientes acreditavam estar recebendo um tratamento verdadeiro, mas sofreram todos os rigores da doença. O serviço norte americano de saúde alegou que, como já existia antibiótico para o tratamento da doença, essa seria uma última oportunidade para estudá-la, com todos seus sinais e sintomas (Reverby, 2012).
Beecher propôs que toda pesquisa com seres humanos deveria instituir o protocolo de consentimento e que o pesquisador deveria agir acompanhado de responsabilidade moral para com os sujeitos da pesquisa. Ele também denunciou os abusos chamados de experimentações médicas, praticados por médicos nazistas em campos de concentração e julgados em 1945. As experimentações das cidades de Buchenwald e Dachau ocorreram pois havia “material humano” disponível. Prisioneiros de guerras eram submetidos a experimentos sem consentimento e sem autonomia sobre eles. Testes eram realizados para verificar o limite máximo da audição, por exemplo, entre outros que chocaram a comunidade após a guerra. Em 1945, os responsáveis pelos experimentos foram questionados e julgados em um tribunal que ficou conhecido como Tribunal de Nuremberg. Em sua defesa, os responsáveis alegaram que seguiam as leis vigentes da Alemanha na época, legitimando seus atos baseados na lei que existia no país (Pessini; Barchifontaine, 2008).
De acordo com Pessini e Barchifontaine (2008), por pressão do público e percepção de pesquisadores e estudiosos, compreendeu-se que estudos deveriam ser feitos de forma a considerar não somente o avanço científico, mas também a dignidade humana, independentemente das leis e do local. A dignidade humana é um pilar fundamental da bioética e, nesse sentido, deveria ser respeitada. Ainda, a violação da dignidade humana seria vista como incompatível com o estado democrático de direito.
Outro evento importante foi o Relatório Belmont, que foi elaborado devido à necessidade que a sociedade norte americana sentiu de controlar as pesquisas sobre seres humanos, quando descobriu inacreditáveis abusos praticados. O Relatório Belmont indica uma ética calculada (utilitarista), com o objetivo de assegurar o maior bem-estar ao maior número de pessoas. Diante de várias alternativas, torna obrigatória a atitude que maximiza o bem-estar e a saúde, e minimiza os efeitos colaterais, como o sofrimento, o desprazer e o mal-estar (Pegoraro, 2002).
O Relatório de Belmont aprofundou os princípios da beneficência que haviam sido afirmados no Código de Nuremberg de 1947 e na Declaração de Helsinki, que surgiu como um patamar fundamental para que os legisladores em cada país normatizassem as pesquisas com seres humanos de forma rigorosa. No Brasil, é possível encontrar na resolução 196/96 as normas que se aplicam às pesquisas com seres humanos (Westphal, 2004).
A teoria principialista surgiu em 1979 baseada no relatório de Belmont e foi assim chamada devido ao trabalho do filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress, intitulado “Princípios da Ética Biomédica”. Tal teoria apontou quatro princípios como base para uma pesquisa médica consistente: autonomia, beneficência ou não maleficência, e justiça. Esses princípios diziam respeito diretamente à relação médico-paciente, e com essa publicação foi possível instrumentalizar a bioética e trazê-la com sucesso para o meio acadêmico estadunidense, por meio do principialismo (Diniz; Guilhem, 2002).
O principialismo relembra o relatório de Belmont, mas reintroduz o princípio da não maleficência com base em quatro princípios importantes. O primeiro é o princípio da autonomia ou respeito à autonomia, que prega a competência e a liberdade individual, respeitando-se as convicções e decisões morais do paciente, tendo este o direito de ser informado sobre todos os procedimentos que poderão ser aplicados ou não, ainda que seja incapaz, para que alguém responsável possa decidir por ele (Pegoraro, 2002).
O primeiro princípio da autonomia pretende garantir o respeito ao individuo, protegendo-o de abusos que possam ser cometidos pela prática médica e pesquisa científica (Westphal, 2006a). Um dos instrumentos mais comuns para a prática deste princípio é o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), que é oferecido aos participantes para orientar e esclarecer tudo que será realizado durante estudos e experimentação científica.
O segundo e terceiro princípios são a beneficência e a não-maleficência, os quais garantem que as consequências de qualquer intervenção sejam em benefício da pessoa e, inclusive, que não existam malefícios aplicados a ela (Pegoraro, 2002).
O quarto princípio, a justiça, exige tratamento igual e diz respeito ao Estado que deve distribuir equitativamente os recursos aos sistemas de atenção em saúde (Pegoraro, 2002). O princípio da justiça não teve sua temática tão aprofundada quanto os princípios citados anteriormente, mas se encaixa na questão da cidadania e do direito à saúde como um aspecto essencial da dignidade humana. Segundo Westphal (2006a, p. 12-13), “a ética principialista precisa ser atualizada, agregando outros valores ao contexto de opressão e pobreza, como virtude, a comunidade, a compaixão, a solidariedade, o cuidado e a equidade”. Nesse sentido, “nem tudo que é tecnologicamente possível também é eticamente sustentável, pois as possibilidades técnicas da ciência revelam um potencial destruidor extraordinário e imprevisível” (Westphal, 2004, p.107). O ser humano se depara com possibilidades técnicas extraordinárias da ciência, mas, ao mesmo tempo, existem questões éticas relacionadas intimamente com a própria sobrevivência da humanidade e do planeta Terra que devem ser consideradas, e é nesse contexto que entra a bioética.
Neste sentido, a bioética evoluiu para discutir e criticar os conteúdos éticos referentes à vida humana para além das relações médicas, tonando-se, na década de 1990, uma “[...] ‘macrobioétic’ ou ‘ética global’, cujos aspectos como a globalização, proteção do meio ambiente e direito das futuras gerações ampliaram para sua gestão o horizonte dos direitos à vida, os quais já não são individuais nem sociais, porém globais e atemporais” (Fischer et al., 2017, p.402).
A consolidação da bioética ambiental responde tanto ao processo de resgate histórico da proposta inicial de Potter, e igualmente aos problemas éticos emergentes que desafiam a disciplina, como às mudanças climáticas globais, às epidemias de doenças transmissíveis, à configuração do modelo de desenvolvimento sustentável, entre diversos problemas de escala global (Fischer et al., 2017).
De caráter emergente, dentro do desenvolvimento rural sustentável, busca-se refletir e discutir o problema ético ambiental da contaminação do meio ambiente e da intoxicação humana devido ao uso indiscriminado de agrotóxicos no modelo convencional de produção alimentar, que fere os princípios bioéticos da autonomia, não maleficência, beneficência e justiça.
5.A dimensão ética e bioética no desenvolvimento rural sustentável
A defesa e a promoção da sustentabilidade relacionada à bioética no desenvolvimento sustentável do ser humano, à proteção do meio ambiente e à qualidade de vida para esta e as futuras gerações, encontrou eco em dois importantes documentos produzidos no início do novo milênio:
[...] a Carta da Terra, redigida pela UNESCO em 2000, e o “Manifesto pela Vida, por uma Ética para a Sustentabilidade”, aprovado em 2002 pelos ministros do meio ambiente latino-americanos. O manifesto pela vida nos alerta na sua introdução de que a crise ambiental é uma crise de civilização. É a crise de um modelo econômico, tecnológico e cultural que tem depredado a natureza e negado as culturas alternativas. O modelo civilizatório dominante degrada o meio ambiente, sub-valoriza a diversidade cultural e desconhece o Outro (o indígena, o pobre, a mulher, o negro, o Sul), ao mesmo tempo em que privilegia um modo de produção e um estilo de vida insustentáveis que se tornaram hegemônicos no processo da globalização (Brasil, s.d. apud Ahlert, 2017, p. 10).
Uma das características mais importantes da busca pelo desenvolvimento sustentável é sua diversidade de paradigmas e conceitos, levando as discussões relacionadas ao tema a uma amplitude de definições e conceitos de caráter multidisciplinar. A multidisciplinariedade congrega tendências e propostas que orientam ações, e considera valores como a equidade, a cidadania, a justiça, a democracia e a conservação ambiental (Gonçalves Júnior, 2010).
Cuidado e sustentabilidade caminham juntos na luta contra a destruição provocada pelo modelo hegemônico. Valores ligados à cooperação, ao cuidado e à compaixão são princípios éticos pregados por instituições que praticam a agroecologia. São estes espaços pessoais e sociais que reconhecem o valor capaz de desarmar o ódio e prover um rosto humanizado e civilizado à humanidade. Prevalecer o princípio da cooperação sobre a competição é o salto de qualidade que preservará a nossa vida na terra (Boff, 2013a; Boff, 2008).
Em decorrência da voraz competitividade instituída pelo capitalismo em detrimento dos recursos finitos e restrita capacidade de suporte do planeta Terra, o documento Carta da Terra surgiu como resposta às ameaças lançadas sobre o planeta. Esse documento, assumido em 2003 pela UNESCO, propõe novas formas de pensar o planeta, envolvendo problemas ecológicos e sociais e suas consequências. Apresenta-se o planeta Terra e seus habitantes sob o paradigma da responsabilidade coletiva e do cuidado essencial. A Carta da Terra é estruturada em quatro princípios fundamentais que articulam as grandes tendências da ecologia: ambiental, social, mental e integral (Boff, 2008; Carta da Terra, 2000).
Principalmente após a eclosão dos movimentos ecológicos dos anos 1960 e devido à necessidade de cuidar da natureza para minimizar os danos já causados a ela, a ética ambiental surgiu para justificar a proteção da totalidade da vida da biosfera para além do tempo imediato, em oposição aos exclusivos interesses econômicos e antropocêntricos. Buscou-se identificar a exclusividade dos desejos humanos e tratou-se de reconhecer a totalidade da vida como um bem de alto valor (Fischer et al., 2017).
Ao analisar fragmentos da Carta da Terra, que pregam o respeitar e cuidar da comunidade de vida, proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos, promover a dignidade humana, a saúde e o bem-estar, volta-se para uma bioética dentro do desenvolvimento sustentável. Tal discussão ganha maior atenção quando se analisa o modelo hegemônico de produção de alimentos em uma de suas características mais perversas: o intensivo uso de venenos na lavoura.
Os fundamentos para uma bioética ambiental nasceram de pesquisas de grandes referências que enfrentaram as questões da destruição ambiental desde suas áreas de conhecimento.
Os agrotóxicos foram usados ao longo do tempo para combater pragas, porém, paradoxalmente, interferiram na natureza e ocasionaram a redução da sua biodiversidade. Ocorreu, com isso, uma destruição da vida em nome do combate às pragas e do controle de doenças na forma de produção convencional de alimentos (Carneiro, 2015).
Ao observar e relacionar os problemas de contaminações letais de trabalhadores em fazendas, Carson (2010) denunciou o desastre ambiental decorrente da utilização maciça de diclorodifeniltricloretano (DDT), através da pulverização aérea de substâncias carcinógenas e neurotóxicas, criadas pelo ser humano e empregadas na lavoura como defensivos agrícolas. A autora, bióloga marinha, escritora, cientista e ecologista norte-americana, igualmente denunciou o câncer de origem ambiental, relacionado e causado por essas substâncias. Também foram relatados inúmeros casos com uso de substâncias químicas formuladas para erradicar erva daninha e insetos que, em doses muito altas, causaram o aparecimento de inúmeras doenças nos seres humanos.
Carson demonstrava uma grande preocupação com o uso de agrotóxicos e as consequências para o meio ambiente e o ser humano. Todos os organismos na natureza estão interligados, e com essa conexão se mantém a vida. No entanto, a alteração, em algum momento, do funcionamento normal dessa teia da vida, traria consequências e desequilíbrio ambiental subsequente. Era essa a questão primordial que Carson almejou durante a vida e que desencadeou a produção do livro Primavera Silenciosa em 1962.
Influenciando gerações, Carson trouxe prestígio ao conceito de ecologia. Além de denunciar os efeitos do DDT, despertou a consciência ambiental de uma nação para reagir e exigir explicações e buscar soluções para o problema. Trouxe a discussão da bioética para o desenvolvimento rural sustentável ao relatar acerca do direito moral de cada cidadão de ter acesso ao conhecimento sobre as substâncias lançadas de forma irresponsável na natureza pela indústria química.
“Intoxicada com a sensação de seu poder, a humanidade parece estar se envolvendo cada vez mais em experiências de destruição de si própria e de seu mundo” (Carson, 2010, p.15). Carson constatou que a tecnologia estaria avançando em uma trajetória muito mais rápida do que o senso de responsabilidade moral da humanidade. A relação do conhecimento científico e da eficiência da tecnologia deveria ser avaliada, primariamente, quanto à segurança e ao benefício de toda a “corrente da vida”. Tanto a ciência como a tecnologia se tornaram servas da indústria química, que tinha como objetivos, sobretudo, o lucro e o controle dos mercados (Carson, 2010).
Carson criticou o governo por deixar seus cidadãos desprotegidos em relação às substâncias sem controle de uso, pois, naquele momento, havia um uso exagerado do DDT, inclusive em áreas urbanas, com discurso de ser totalmente seguro e sem necessidade de equipamentos de proteção individual (EPI). Onde estaria o direito moral dos cidadãos? A obrigação de suportar reflete o direito de saber. Carson acreditava na ecologia do corpo humano, e proporcionou reflexões sobre a relação entre os seres humanos e o meio ambiente natural. O corpo humano, para a bióloga, era permeável e vulnerável a substâncias tóxicas que estariam no meio ambiente e cujos níveis de exposição não poderiam ser controlados, nem os cientistas poderiam prever quais os resultados da bioacumulação e seus impactos na saúde humana a longo prazo (Carson, 2010).
Como protagonista, Rachel Carson deflagrou o movimento ambientalista e levou a opinião pública a debater as implicações éticas dos modelos de desenvolvimento e da aplicação de tecnologias prejudiciais ao meio ambiente, especialmente da indústria química. Isso se observa no discurso da publicação da obra Silent spring:
Primavera Silenciosa incita todas as gerações a reavaliar suas relações com o mundo natural. Somos uma nação que ainda debate questões levantadas, que ainda não se decidiu a respeito de como agir para alcançar o bem comum e como atingir a justiça ambiental. Ao afirmar que a saúde pública e o meio ambiente humano e natural são inseparáveis, Rachel Carson insistiu em que o papel do especialista precisava ser limitado pelo acesso democrático e devia incluir o debate público sobre os riscos das tecnologias perigosas (Carson, 2010, p.18).
Destaca-se, ainda, no seu livro, princípios da bioética, a justiça e a beneficência, como objetivos principais das ações de promoção à saúde humana e ambiental.
Após as duas grandes guerras, a indústria química procurou novos mercados e encontrou na agricultura um meio de crescimento com consequências destrutivas. Os químicos responsáveis por grandes destruições passaram, paradoxalmente, a ser indispensáveis à agricultura, e são lembrados não apenas por matar pessoas, mas também, matar insetos. Os grandes estoques de químicos mortais resultantes das guerras tiveram então sua utilização: a produção de alimentos. Desequilíbrios foram causados e novos químicos foram sendo sintetizados para restaurar o que não surtia mais efeito. O uso de agrotóxicos, que inicialmente foi visto com deslumbre pela facilidade de produção e extermínio de pragas, hoje manifesta os resultados de sua agressividade, através de um caminho suicida (Lutzemberger, 2004).
Quando um agricultor orgânico faz determinados tratamentos com substâncias para fortalecer a planta, então sim, deveríamos usar a palavra defensivo. Por isso agrônomos conscientes lançaram a palavra agrotóxicos para designar os biocidas da agroquímica. Não se trata de querer agredir a indústria, trata-se de precisão de linguagem (Lutzemberger, 2004, p. 51).
O engenheiro agrônomo e ambientalista Lutzenberger defendia que as doenças da agricultura e pragas não são problemas, e sim sintomas, e que um sábio agricultor e camponês saberia resolver a questão com manejo do solo, adubação orgânica e mineral, rotação de cultivos, associação de plantas, entre outras técnicas. A indústria química combate os sintomas e não investiga suas causas, ignora-as (Lutzemberger, 2004).
Lutzemberger colocava em prática princípios de uma nova ética humana em relação à natureza. Em seu trabalho como paisagista concebia seu trabalho sob um ponto de vista holístico. Foi conhecido por sua atuação contra o uso de agrotóxicos. Trabalhou treze anos para a multinacional agroquímica BASF (1957-1970), e retornou ao Brasil após a empresa entrar no ramo de agrotóxicos. Durante sua trajetória ambientalista de 31 anos de militância (1971-2002), o brasileiro lutou com publicações, palestras e entrevistas, para que a humanidade adotasse uma postura ética ecocêntrica em relação à natureza (Pereira, 2016).
A ética defendida por Lutzenberger era ecológica, pois estava embasada em conceitos da ciência Ecologia, e ecocêntrica, por considerar a relação humanos-natureza dentro de um todo maior, levando em conta a interdependência entre os seres. Costuma-se dividir a ética em relação ao meio ambiente em duas grandes correntes: as éticas antropocêntricas e as biocêntricas. Cada uma delas engloba uma série de tendências, de acordo com o ponto de partida das reflexões: o homem ou a natureza (Pereira, 2016, p. 71).
A principal luta de Lutzenberger era a difusão de uma nova relação homem-natureza, expressa através de uma ética acima do antropocentrismo, que considerasse todos os seres vivos: uma ética ecocêntrica. Apresentou-se nas palestras dos anos 1970 como um profeta do apocalipse, divulgando a crise ambiental e a urgente necessidade de revertê-la para a manutenção da vida humana. Em seu primeiro texto como ambientalista, Por uma ética ecológica, constata-se que sua base advinha de autores como Aldo Leopold, Rachel Carson, Hans Jonas, Albert Schweitzer, Ivan Illich, Frijof Capra e em defensores da deep ecology. (Pereira, 2016).
Em seu discurso, o ambientalista relatou problemas de saúde relacionados a agrotóxicos, sem a possibilidade de prever efeitos crônicos com uma pequena dose diária de veneno, e como a responsabilidade de danos crônicos à saúde é facilmente mascarada, ao se comparar com agravos agudos, com sinais e sintomas definidos. Assim, os altos executivos da indústria química dormem tranquilos (Lutzemberger). Em caso de intoxicação aguda, ainda alegam que pode ser “mau uso”, ou concentração inadequada, ou falta do uso de equipamentos de proteção (Lutzemberger, 2004, p. 61). E, pela ausência de uma formação adequada dos profissionais médicos nesta área, em situações de intoxicação por agrotóxicos, as indústrias de venenos encontram guarida na ineficácia do atendimento médico.
Não levam em conta a complexidade e envolvência da situação real. Por isso são comuns tratamentos inadequados. O médico confunde os sintomas. Até agora não conheço trabalho eficiente da agroquímica no sentido de informar os médicos quanto aos problemas toxicológicos dos venenos agrícolas” (Lutzemberger, 2004, p. 65).
Uma das contribuições mais significativa da teologia veio através da Teologia da esperança de Jürgen Moltmann. Sua experiência como soldado e prisioneiro de guerra no campo de concentração Northon-Camp, na Inglaterra, direciona-o em um momento onde o futuro era incerto e era possível observar e sentir a crueldade humana através das atrocidades ocorridas durante a guerra. A esperança tornou-se sua companheira. Em tempos onde a ética já foi e é constantemente colocada de lado, resgates como a Teologia da esperança de Moltmann e os laços ecológicos necessários à sobrevivência humana são discursos importantes de serem estudados dentro da bioética no desenvolvimento sustentável (Kuzma, 2013; Gonçalves; Canatta, 2008).
Com um discurso concernente aos temas da modernidade, Moltmann, teólogo alemão respeitado e influente do mundo contemporâneo, defende uma teologia expressiva, com forte teor dogmático e um diálogo com a sociedade presente. Iniciou suas reflexões e posicionamentos a partir de uma experiência pessoal, onde teve o seu contato com Deus e, assim, um despertar na esperança, durante e após a segunda guerra mundial, quando esteve em campo de concentração (Kuzma, 2013). Foi nesse contexto que desenvolveu sua teologia e, a partir disso, é possível compreender sua noção de esperança:
Com base nas construções acima, Moltmann defende uma perspectiva de uma ética da terra baseada na Carta da Terra. Todas as formas de vida devem ser respeitadas pelos seres humanos, independente do valor que os humanos dêem a essas formas de vida. Todas as formas de vida devem ser respeitadas e protegidas como uma mãe. Do ponto de vista do cristianismo, quem protege a natureza por causa de Deus, também deve protegê-la por ela mesma, pela sua própria existência e significado. Também deve protegê-la por causa do próprio ser humano, do seu Outro e das gerações vindouras. Deve-se superar a condição antropocêntrica de dominar e submeter à terra aos ditames da voracidade econômica. Acabar com a prática de sua exploração em seus recursos naturais. Devemos aprender a morar na terra, deixar crescer a natureza e buscar a convivência pacífica com ela (Ahlert, 2017, p. 36).
Segundo Ahlert (2017), Moltmann prega a necessidade de os seres humanos desenvolverem um estilo de vida responsável através de uma sociedade solidária, na qual a liberdade se torne comunicativa e o respeito às diversidades culturais seja seu núcleo. Como exemplo, na doutrina social cristã, a comunidade precisa ser solidária, com políticas de igualdade e proteção aos mais fracos e doentes. São esses princípios éticos que devem ser universais.
Moltmann buscou mostrar que a doutrina ecológica da criação parte de uma imaginação messiânica do futuro. Para o teólogo, a libertação das pessoas está em comunhão com a natureza. Seu pensamento se desenvolve articulando o problema ecológico e a criação em perspectiva trinitária, e representa grandes contribuições no que se refere à situação ecológica e à ética da criação (Silva, 2012).
Sem dúvida, Jürgen Moltmann, ao sistematizar a história da criação e a crise ecológica articuladas à vida humana, torna surpreendentemente claro que todas as coisas no universo são interligadas. Há uma relação interior entre o que acontece nas estrelas e o que acontece na evolução da vida na terra. Dessa forma, o ser humano, enquanto imagem e semelhança de Deus podem contribuir com o resgate da vida do planeta (Silva, 2012, p.46).
Quando se refere a temas que abordam a ética, é importante salientar que é constante a preocupação teológica com a vida do planeta Terra, na qualidade de um planeta saudável e habitável. Tanto Jürgen Moltmann, como também o teólogo Leonardo Boff, que terá seu discurso colocado na sequência, pregam a formulação de uma teologia ecológica.
Cada teólogo tem seu próprio caminho metodológico e epistemológico, mas ambos centralizam suas reflexões na vida, formulando assim uma verdadeira teologia da vida. A Teologia da esperança, como foi apresentada a teologia de Moltmann, sensibilizou-se pelos acontecimentos catastróficos do século XX e pelas diferentes situações de pobreza vistas em sua totalidade econômica, política, social, cultural, ética e religiosa existentes na humanidade. A partir dessa sensibilidade, produziram-se diversos modos de produção teológica, tendo em vista dar consistência e contemporaneidade ao complexo teológico (Gonçalves; Canatta, 2008).
A nova sensibilidade teológica propiciou atenção à crise ecológica, exigindo investigar o significado da ecologia e suas repercussões à vida humana e planetária. Assim sendo, a ecologia foi definida como arte das relações dos seres vivos entre si e desses com os seres não vivos. Ecologicamente, os seres são interdependentes e se complementam uns aos outros. A crise ecológica ocorre quando esse sistema se rompe e provoca isolamento e possibilidade de destruição e morte. Os atuais sintomas da crise tais como a abertura de um buraco na camada de ozônio, o efeito estufa, a chuva ácida, o desflorestamento, a pobreza humana acirrada cada vez mais, denotam a urgência de medidas efetivamente ecológicas emergentes de uma ética da responsabilidade e do cuidado (Gonçalves; Canatta, 2008, p. 96).
É possível compreender a intenção da teologia de Moltmann ao correlacioná-la com o tema da bioética e dos agrotóxicos. A crise ecológica, como visto acima, ocorre quando há um rompimento nos sistemas da natureza, que leva a isolamento, destruição e morte. Em analogia ao sistema convencional de produção, observa-se uma quebra nas ligações ecológicas, isolando-se o sistema de produção. Este, para não sucumbir à morte, passa a ser paliativamente abastecido com insumos químicos que mascaram a insustentabilidade desse sistema de produção, e ainda acarretam inúmeros prejuízos ao meio ambiente e ao ser humano. Para Moltmann, firmado na fé, buscam-se a esperança, o cuidado e uma ética ecológica responsável.
A teologia ecológica é uma verdadeira teologia da vida e, por isso suscita a utopia da vida, da certeza de que a destruição e a morte não se constituem na última realidade planetária e cósmica, mas a vida que há de vir, o futuro glorioso de toda a criação, em sua qualidade de glória divina é que a teologia ecológica defende e sustenta, tornando-se assim uma ciência consistente, relevante pertinente na era contemporânea (Gonçalves; Canatta, 2008, p. 97).
Deste encontro com a esperança e com a fé cristã é que surgiu a Teologia da Esperança, que na atualidade passa a discutir com a questão ecológica e política global (Kuzma, 2013).
Por sua vez, de Leonardo Boff veio a discussão sobre o cuidado e a sustentabilidade que caminham juntos na luta contra a destruição provocada pelo modelo hegemônico. O teólogo brasileiro Leonardo Boff é escritor e professor universitário de ética, filosofia e ecologia. É um dos maiores representantes da Teoria da Libertação no Brasil e conhecido internacionalmente por sua defesa dos direitos dos pobres e excluídos. Para Boff, agindo de forma humanizada, exercendo o cuidado como política ecológica e entendendo a responsabilidade para com a vida e seu futuro, é possível entrar em um consenso ético com todos os humanos a respeito das futuras consequências das atitudes tomadas. Tudo o que vive e merece viver exige cuidado (Boff, 2008).
São estes espaços pessoais e sociais que reconhecem o valor capaz de desarmar o ódio e prover um rosto humanizado e civilizado a humanidade. Fazer prevalecer os princípios da cooperação sobre a competição, do cuidado e da compaixão, é o salto de qualidade que preservará a vida na terra, e, por conseguinte, proporcionará garantia de vida às próximas gerações (Boff, 2013b; Boff, 2008).
A extração da natureza feita pelo ser humano já supera muito o que o ecossistema planetário é capaz de regenerar. Nos próximos anos, até mesmo três planetas Terra para exploração humana não serão suficientes para sustentar o modo de vida extrativista. A biodiversidade, estrutura viva do planeta, inclui vida em todos os níveis: genes, espécies e ecossistemas e, em cada nível, contribui para o bem-estar humano, proporciona recursos valiosos e contribui para um ambiente operativo seguro (Lourenço; Oliveira, 2012; Gonçalves Júnior, 2010).
Uma das características mais importantes da busca pelo desenvolvimento sustentável é sua diversidade de paradigmas e conceitos de caráter multidisciplinar. A multidisciplinariedade congrega tendências e propostas que orientem ações, e considera valores como a equidade, a cidadania, a justiça, a democracia e a conservação ambiental (Gonçalves Júnior, 2010). Porém, não há como falar de sustentabilidade sem considerar sua principal grandeza, a dimensão ética. Deve-se buscar um contorno de uma nova ética, um novo saber e uma nova estrutura governamental, bem como buscar estabelecer uma nova relação entre a sociedade e o meio ambiente. O modelo de desenvolvimento econômico tecnológico está entre os problemas existentes, sendo que, ao produzir externalidades ou efeitos secundários, gera consequências negativas à própria sociedade.
Segundo Boff (2013b), somos a própria Terra, e não algo dissociado dela. Somos a Terra em seu momento de autorrealização e autoconsciência, pois somos formados pelos mesmos elementos químicos e físicos, e compartilhamos da mesma energia. O ser humano é totalmente responsável por sua própria existência, e suas atitudes atingem a vida e modulam sua essência.
Analisando sob outro prisma, a Terra seria uma mãe generosa que concebe, gesta e dá à luz, e, assim, numa concepção generativa, nos tornamos seus filhos e filhas. A Terra passa a ser nossa Grande Mãe, Pacha Mama, e, ao morrer, retornamos ao seu solo generoso que nos deu a vida. Sentir que somos Terra, ou filhos dela, nos dá sensibilidade e promove o cuidado, pois este é a essência do ser humano (Boff, 2013b).
Instituições como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a União Internacional para Conservação da Natureza (UICN), e o Fundo Mundial para Natureza (WWF), organizaram uma estratégia meticulosa para o futuro da vida: Caring for The Earth (Cuidando da Terra), com nove princípios de sustentabilidade fundamentados no cuidado global:
1.Construir uma sociedade sustentável; 2. Respeitar e cuidar da comunidade dos seres humanos; 3. Melhorar a qualidade da vida humana; 4. Conservar a vitalidade e a diversidade do planeta Terra; 5. Permanecer nos limites da capacidade de suporte do planeta Terra; 6. Modificar atitudes e práticas pessoais; 7. Permitir que as comunidades cuidem de seu próprio meio ambiente; 8. Gerar uma estrutura nacional para integrar desenvolvimento e conservação; 9. Constituir uma aliança global (Boff, 2013b, p. 25).
Para Boff (2013b), estes princípios formariam o cuidado essencial para com a Terra, e este cuidado, por sua vez, promoveria a ética de um planeta sustentável.
Jaime Breilh, médico e professor equatoriano, teórico da epidemiologia crítica, ramo fundamental da nova saúde pública, declara que a riqueza é a responsável pela destruição ambiental em detrimento da saúde: “Sim, a biodiversidade é um péssimo negócio” (Breilh, 2017, p. 1).
La epidemiología crítica construye su mirada desde la complejidad y asume la salud como un proceso multidimensional constituido por el movimiento e interrelación entre procesos colectivos e individuales. Eso enlaza: los procesos generales de la sociedad — que definen la lógica de su desarrollo y las grandes formas de relación o metabolismo con la naturaleza; los modos de vida de sus grupos particulares; y los procesos individuales socio-biológicos de sus indivíduos (Breilh, 2015, p.9 74).
Na década de 1970, Breilh já havia desenvolvido seus estudos sobre a determinação social da saúde, com uma nova visão da epidemiologia tradicional. Afirmou que é necessário mudar o objeto da saúde. Deve-se trabalhar sobre o processo de enfermidade, como e por que as pessoas adoecem. Os determinantes sociais da saúde são as condições sociais e econômicas que influenciam nas diferenças individuais e coletivas para o estado de saúde (Breilh, 2015).
O fármaco-biológico é muito poderoso. Não estuda os problemas de saúde como uma totalidade, mas, sim, o divide por inteiro, e para cada porção tem um medicamento. E é assim que as matrizes de poder determinam as potencialidades de defesa e os problemas. A agricultura se torna, então, uma economia da morte por destruição ambiental. Os recursos naturais são tomados apenas como recursos para fazer negócios. Muitas das atividades econômicas atuais, como a mineração extrativista, a agroindústria com transgênicos, estão ligadas a grandes interesses. E tudo se reduz a uma questão de lucros, não há um enfoque ambiental. É necessário mudar o objeto da saúde. [...] Já falamos da agricultura da morte. Produz-se o que chamamos fogueira tóxica, que é desencadear os efeitos deletérios do aquecimento global em regiões cada vez menores (Breilh, 2017, p. 1).
Breilh (2006) se opõe a uma visão reducionista da saúde e se volta para a complexidade e a multidimensionalidade da epidemiologia, com uma perspectiva intercultural e interdisciplinar, envolvendo a ciência, a política e a ética. As três dimensões, científica, política e ética, constituem os pilares de uma epistemologia como reflexão e de uma ciência como processo. Para este autor, a epidemiologia crítica deve ocorrer em linhas de ações, rompendo os moldes tradicionais biomédicos e funcionalistas:
Esto debe ser hecho en líneas de acción que signifiquen al mismo tiempo una ruptura hacia una sociedad sustentable, soberana, solidaria y bio-segura en todos sus espacios, que hagan posible la preeminencia de procesos protectores y soportes, colectivos, familiares e individuales, que posibiliten el predominio de formas fisiológicas y psíquicas, que sustenten una buena calidad de vida biológica y psíquica, posibilitando una mayor longevidad, capacidad de asimilación de noxas, potencialidad para la plena actividad física en todas las edades, y disfrutando del placer y de la espiritualidad (Breilh, 2015, p.974).
Além de capacidades anato-fisiológicas, o ser humano é ser social, cultural espiritual e ambiental, cujas atividades exercidas ao longo de sua existência determinam consideravelmente sua saúde e sua qualidade de vida.
Entretanto, há uma grande distância entre os conhecimentos científicos sobre o tema e o conhecimento daqueles que são usuários dos agrotóxicos para a produção de alimentos na agricultura convencional. Os maiores problemas estão relacionados à desinformação sobre agrotóxicos decorrente da complexidade da ciência que atende a indústria produtora e os interesses do mercado na comercialização em larga escala desses produtos. As informações sobre suas funcionalidades, objetivos e riscos para os seres humanos e o ambiente são semi-informações, portanto, pouco compreensíveis para os usuários.
No caso do Estado do Paraná, Brasil, a produção e exportação de soja, que usa o agrotóxico em larga escala, estão crescendo muito nos últimos anos.
De acordo com informações da Federação da Agricultura do Paraná (Faep), as exportações de soja em grão, principal produto básico exportado pelo Paraná, praticamente dobraram em dez anos. O volume exportado saltou de 6,98 milhões de toneladas em 2010 para 13,40 milhões de toneladas em 2020 (Fantin, 2021).
Esta realidade se apresenta no contexto do Brasil como exportador de commodities. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), o Brasil é, atualmente, o maior produtor de soja no mundo. Conforme o levantamento da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), em 2022 a produção de soja foi de 123.829,5 milhões de toneladas, numa área plantada de 40.921,9 milhões de hectares, alcançando uma produtividade de 3.026 kg/há (Embrapa Soja, 2022).
Diante disso, o mercado de agrotóxicos teve uma expansão gigantesca. Segundo Salati (2023), “O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro liberou 2.182 agrotóxicos entre 2019 e 2022, o maior número de registros para uma gestão presidencial desde 2003”. Este é o risco ambiental que exige desenvolver conhecimentos e consciência bioética, para enfrentar o potencial destrutivo decorrente da produção de commodities no Brasil.
A humanidade já desenvolveu com êxito o conhecimento biológico sobre o passado evolutivo que a trouxe até o presente. Hoje é necessário repensar os paradigmas de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico para que exista um futuro saudável para todos os seres vivos, atuais e futuros, considerando os valores - solidariedade, compaixão, alteridade, cuidado, proteção e responsabilidade.
Para Ahlert, é necessária a existência de uma modernidade que defina objetivos e não meios. Objetivos definidos com base em sentimentos humanos, de uma humanidade com efetiva participação, e não somente de interesses privados. Isso implica promover a construção de uma ciência mais compatível com processos sustentáveis, e radicalizar e aprofundar a democracia também nesse campo, aumentar comitês de ética, instituições comunitárias, associações, sindicatos, cooperativas, parlamentos municipais, estaduais e federais, buscando assentar “os novos conhecimentos e as pesquisas sobre uma epistemologia ambiental sustentável” (Ahlert, 2017, p. 47).
De caráter emergente, dentro do desenvolvimento rural sustentável, busca-se refletir sobre os desafios éticos ambientais originados pela contaminação do meio ambiente e da intoxicação humana devido ao uso indiscriminado de agrotóxicos no modelo convencional de produção alimentar. Caminha-se na busca de um novo paradigma ético que supere a visão clínico-assistencial e a questão saúde-doença, entendendo a saúde e a qualidade de vida como resultantes de um conjunto de fatores sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais.
O conhecimento da bioética dentro do desenvolvimento rural sustentável, relacionada principalmente à questão dos agrotóxicos, faz-se necessário quando se pensa em uma educação interdisciplinar ambiental e de saúde. Profissionais de saúde devem estar envolvidos e cientes das suas responsabilidades éticas a partir do momento que alcançam a compreensão dos múltiplos fatores e externalidades do processo saúde-doença, onde o ser humano deve ser visto de forma holística. Além das capacidades anato-fisiológicas, o ser humano é também um ser social, cultural, com valores e, igualmente, um ser ambiental, onde o ambiente e as atividades que exerce estão totalmente conectados à sua saúde e qualidade de vida.
Em resumo, a tese da pesquisa afirma que a bioética se baseia:
-Na ecologia agronômica de José Lutzenberguer, da sinfonia da vida, da ciência da sobrevivência.
-Na biologia de Rachel Carson, que comprovou a bioacumulação dos agrotóxicos nos seres humanos e apontou para a prudência, para que a sociedade humana não fosse cobaia do mercado.
-Na abordagem filosófica de Leonardo Boff, que alcunhou a dimensão ética na definição de sustentabilidade, da ética do cuidado, em que o ser humano é definido pelo cuidado.
-Na ética da esperança de Jürgen Moltmann, que alimenta uma ética da terra baseada na Carta da Terra, através da qual todas as formas de vida devem ser respeitadas e protegidas pelos seres humanos, independentemente do valor que os humanos dão a essas formas de vida. Uma ética que supera a condição antropocêntrica de dominar e submeter a terra aos ditames da voracidade econômica mediante a exploração de seus recursos naturais.
-Na epidemiologia crítica de Jaime Breilh, que defende a complexidade e a multidimensionalidade da epidemiologia, com uma perspectiva intercultural e interdisciplinar que envolve a ciência, a política e a ética, e se constitui em nova dimensão para o desenvolvimento rural sustentável no enfrentamento da questão dos agrotóxicos e em seu uso indiscriminado na produção agrícola, o que ocasiona impactos severos à saúde da população do oeste do Paraná, Brasil.
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Juliane Vanderlinde Hort é doutora em Desenvolvimento Rural Sustentável, mestra em Desenvolvimento Rural Sustentável e integrante do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar e Interinstitucional de Pesquisa e Extensão (GIIPEDES) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Dentre os projetos de extensão que participou, destaca-se o Projeto Rondon (2008 - PA) Operação Grão-Pará. Bolsista do Projeto Encontros de Cidadania, Povos Indígenas, pela Universidade Sem Fronteiras (2010). https://orcid.org/0000-0002-5406-6430
Alvori Ahlert é pós-doutor em Educação, doutor em Teologia (Área: Religião e Educação), mestre em Educação nas Ciências (Área Filosofia). Professor Associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável. Pesquisador do Grupo Interdisciplinar e Interinstitucional de Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Sustentável (GIIPEDES); do Grupo de Pesquisa de Economia da Religião, do Centro de Estudos Socioeconômicos (UEM); e do Grupo de Extensão e Pesquisa em Educação Física Escolar. http://orcid.org/0000-0001-9984-6409
Wilson João Zonin é engenheiro agrônomo. Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural, Mestre em Extensão Rural. Professor Adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, onde é Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável. http://orcid.org/0000-0002-3364-5599
wzonin@yahoo.com.br
1 Agradecimento à Fundação Araucária pela bolsa que possibilitou a presente pesquisa.
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